O ICMS NA IMPORTAÇÃO
Tributo Não Deve Incidir em Matéria-Prima

*Raul Haidar

A recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, mantendo a isenção do ICMS na importação de matéria-prima importada pela Fiat, representa, em nosso entendimento, claro sinal no sentido de que o Judiciário, afinal, começa a reconhecer a verdadeira natureza jurídica desse imposto estadual.

Realmente, o ICMS não pode incidir sobre matéria-prima importada. E vamos mais além: não deve incidir sobre nenhuma mercadoria importada, pela simples razão de que se trata de tributo interno, incidente apenas e tão-somente sobre as operações de circulação de mercadorias e serviços que tenham se iniciado e possam ser concluídas dentro do território nacional.

Quando o Congresso começa a discutir mais uma "reforma tributária", chega ser preocupante que ainda não tenhamos, mais de trinta anos depois da implantação do ICM no Brasil, reconhecido que esse tributo estadual nada mais é que um imposto sobre o "valor agregado", ou seja, um imposto não cumulativo. Cometem um grosseiro equívoco todos os que, como o atual Secretário da Receita Federal, imaginam que o projeto de "reforma tributária" que se discute no Congresso possa criar algo novo com o pomposo nome do "IVA" - imposto sobre o valor agregado. Afinal, o ICMS é exatamente isso, nada mais que isso, na exata medida em que o imposto pago pelo contribuinte é por este creditado para compensação com o que será devido na próxima saída. O tal de IVA não é nenhuma novidade no Brasil, pois trata-se de imposto sobre o consumo, em tudo e por tudo semelhante ao ICMS e ao IPI.

Ao afirmarmos que o ICMS não pode e não deve incidir sobre a importação, seja de matéria-prima ou de qualquer mercadoria, baseamo-nos no fato bastante simples de ser ele um imposto interno. Nesse sentido é a antiga lição de Ruy Barbosa Nogueira:

"O ICM é essencialmente um imposto interno e por dentro. Incide sobre a circulação de mercadorias dentro do território nacional. Além disso, dentro do princípio de que se exportam bens e serviços e não se exporta imposto, porque estes prejudicariam a capacidade competitiva (porque acarretam a bitributação internacional) o ICM é um dos mais típicos impostos internos; é um dos impostos do consumo interno." ("Direito Tributário Atual", Volume 7/8, páginas 2028/2029 - (Editora Resenha Tributária, S.Paulo, 1988).

Deve-se levar em conta, ainda, que pela obrigatória aplicação do princípio constitucional da não cumulatividade, sempre que se paga o imposto na entrada ou na importação, tal valor será creditado na conta-corrente fiscal do contribuinte, para futura compensação com as saídas tributadas. Não havendo o pagamento, não haverá crédito. Logo, o pagamento na importação não implica, necessariamente, em arrecadação tributária, pois que o valor pago é creditado. Tanto assim, que a doutrina tem sustentado que na hipótese de não ocorrer o pagamento na importação, nenhum débito terá o contribuinte, caso não tenha se creditado.

Nenhuma perda se verifica para o Erário, em termos econômicos, já que o contribuinte que recolhe o imposto torna-se de imediato credor, na escrita fiscal, de valor igual ao pagamento efetuado, crédito esse que ele aproveita para compensar com o tributo devido sobre as futuras saídas dessas mesmas mercadorias.

O ICMS não pode ser tratado como mais um tributo sobre a importação, pois essa não é a sua natureza jurídica. Trata-se , em verdade, de tributo Interno, que apenas pode onerar as operações de circulação econômica de mercadorias realizadas no território nacional. Afinal, como não se pode "exportar" tributo, também não se pode "importá-lo".

Ao cobrar o ICMS na importação, o Estado está, em verdade, fazendo incidir o tributo sobre a própria operação realizada entre o contribuinte brasileiro (importador) e o estrangeiro (exportador). Ou seja: transforma o ICMS, um "dos impostos do consumo interno" (ver acima) em mais um imposto de importação, contrariando expressamente o artigo 153, inciso I da Constituição Federal que diz:

"Art. 153 - Compete à União instituir impostos sobre:

I - importação de produtos estrangeiros;"

Ocorre, assim, uma verdadeira "bitributação", pois pretende o Estado cobrar um imposto de importação travestido de imposto interno (ICMS), contrariando-se não só a própria Constituição Federal, como também os vários acordos internacionais firmados pelo Brasil em matéria fiscal.

A proibição de se cobrar impostos internos sobre mercadorias importadas decorre de inúmeros Tratados internacionais assinados pelo Brasil. Sua observância (dos Tratados) é de fundamental importância, como assinala Alberto Xavier em sua obra "Direito Tributário Internacional do Brasil" (Editora Resenha Tributária, S.Paulo, 1977):

"Ao contrário do que sucede em outros Estados, não existe no Brasil cláusula de "transformação" ou de "ordem de execução" das normas internacionais em Direito interno, de tal sorte que os tratados entram em vigor imediata e independentemente de conversão legal, sobrepondo-se à legislação interna com a qual eventualmente estejam em conflito, respeitando assim a visão monista do direito, com primado do direito internacional."

Veja-se a respeito a posição do nosso Código Tributário Nacional, que em seu artigo 98 registra:

"Art. 98 - Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha."

Não se pode cobrar tributo interno sobre a entrada de mercadoria importada, pois essa cobrança contraria as normas de direito tributário internacional, que o Código Tributário Nacional assegura que "revogam ou modificam a legislação tributária interna".

Também é de Ruy Barbosa Nogueira o entendimento segundo o qual:

"Quando a Constituição Federal do Brasil veda aos entes menores ‘estabelecer diferença tributária entre bens de qualquer natureza em razão de sua procedência ou destino’, declara a toda a Nação que esse assunto é visceralmente matéria reservada à competência privativa do poder central. Não pode um grupo de Estados-membros ou cada Estado, estabelecer diferença tributária entre bens de procedência nacional e estrangeira, precisamente porque esse assunto é relativo ao comércio exterior, cuja competência legislativa, tanto regulatória, como tributária, é privativa da União." (cf. "Direito Tributário Comparado", Ed. Saraiva, S. Paulo, 1971, pág. 110).

Ainda permanece atual o entendimento de Pontes de Miranda ("Comentários à Constituição de 1946", Livraria Boffani, Rio, Vol. I, pág. 515) que ensina:

"Além do que se estatui no artigo 27, frisou a Constituição que a desigualdade entre impostos em razão da procedência é vedada. Aqui proíbe-se o imposto desigual ainda que de procedência estrangeira os bens."

Ora, cobrar do importador o ICMS, seja no desembaraço aduaneiro, seja na sua entrada no estabelecimento, implica em transformá-lo em "contribuinte substituto" do imposto que, em princípio, deveria onerar a operação anterior. Ocorre, porém, que essa "operação anterior" é de importação, tendo se realizado entre o contribuinte importador (brasileiro) e outro, localizado no Exterior, que sobre a sua exportação não paga o ICMS, por não ser contribuinte nacional.

Exigindo o ICMS na importação, já tributada pelo imposto de importação e também pelo IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) o Fisco estadual onera de forma desigual o produto importado em relação ao nacional, praticando uma invasão de competência legal, na medida em que passa a incidir como se fosse um imposto de importação.

Ora, por maior que seja o interesse nacional em proteger a indústria "brasileira" (e todos sabemos que a indústria automobilística aqui estabelecida não é efetivamente "brasileira", mas apenas subsidiária de empresas estrangeiras) não se pode, em nome dessa proteção, cobrar tributo indevido e subverter o princípio da legalidade absoluta.

Vale citar, a propósito do princípio da legalidade absoluta, a sempre oportuna lição de Ives Gandra da Silva Martins, em trabalho publicado no "Caderno de Pesquisas Tributárias" nº 9, sobre "Presunções em Direito Tributário" (Editora Resenha Tributária, S.Paulo, 1984, página 65) de que se destaca o seguinte trecho:

"...a única arma possível do sujeito passivo, nas fronteiras pequenas que lhe são outorgadas, são aquelas garantias consubstanciadas nos dois princípios fundamentais da estrita legalidade e da tipicidade fechada. Ora, tais garantias, das poucas que ainda restam ao sujeito passivo, não são compatíveis com mecanismos convenientes das ficções legais, das presunções e dos indícios transformados em poderosas técnicas de arrecadação para sanar os irreversíveis "déficits" orçamentários, provocados pelo fracasso da presença estatal na economia."

Por outro lado, o tributo incidente nas futuras vendas que o contribuinte faz com a mercadoria importada não pode ser calculado sobre o preço de venda ou o "valor da operação", como atualmente é feito. Deve o tributo ser calculado apenas sobre a diferença entre o preço de custo e o "valor da operação" de venda, ou seja, sobre o "valor acrescido ou "agregado".

A doutrina tem reconhecido a importância desse princípio. Manuel de Juano, emérito tributarista latino-americano, em sua obra "Tributacion Sobre el Valor Agregado" (Victor P. Zavalia, Editor, Buenos Aires, 1975), ensina que:

"Poderia resumirse el IVA como un impuesto que ,recayendo sobre el consumidor final, que es quien en definitiva lo paga através de sus consumos, ha de ser ingresado al fisco por cada una de las etapas del proceso económico de producción distibrución y comercialización, em proporción al valor que cada una de ellas incorpora al producto..... Las caracteristicas del impuesto, sin embargo, en los sistemas tributarios de esos paises marcam diferenciaciones que tendremos ocasión de analizar...quando nos detengamos en la legislación comparada, pero en todos ellos existe un común denominador que diferencia al IVA de los llmados impuestos em "cascada", y que al afectar cada fase de los procesos industriales , productivos y de comercialización, sólo toman como materia imponible, el valor que en cada una de ellas se incorpora al producto.." (páginas 63/64).

A recente decisão do STJ reforça a tese aqui sustentada. E tem mais: laboram em evidente equívoco os que imaginam ser efetivamente de "reforma tributária" o projeto que está no Congresso. Para que merecesse a denominação, teria de ser feita uma nova estrutura tributária para o País, readequando a carga tributária à realidade sócio-econômica do Brasil, simplificando as rotinas burocráticas, reduzindo encargos inclusive trabalhistas e permitindo que a legislação fiscal fosse um instrumento de estímulo ao crescimento econômico. Do jeito que está colocado o projeto, todos percebemos que se pretende fazer apenas alguns ligeiros ajustes, mantendo ou mesmo aumentando a transferência de riqueza da sociedade para os cofres do Estado e apenas trocando alguns "rótulos" , sem maiores aperfeiçoamentos. Realmente não é disso que precisamos...

* Raul Haidar é Advogado Tributarista em São Paulo.

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