DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Aplicabilidade

Sumário

1. INTRODUÇÃO

O Código Civil 2002 contemplou, explicitamente, na redação do artigo 50, a teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica.

Apesar da aplicabilidade jurisprudencial anterior e previsão no Código de Defesa do Consumidor, sua implementação pelo legislador civil representa significativo avanço para a responsabilização de operações societárias fraudulentas e má-administração, garantindo aos credores um efetivo mecanismo para proteção de seus direitos.

2. AUTONOMIA PATRIMONIAL

O princípio de autonomia patrimonial da pessoa jurídica estabelece que a sociedade responde legalmente pelas operações nela realizadas dentro dos limites de gestão estabelecidos nos seus atos constitutivos.

Desta forma, constitui-se em um incentivo às pessoas, que colocam seu capital a serviço de um empreendimento empresarial, com a garantia que não terão seu patrimônio pessoal ameaçado para suprir dívidas da pessoa jurídica.

Nosso ordenamento jurídico sempre priorizou a criação de mecanismos jurídicos eficazes, com o objetivo de proteger essa autonomia patrimonial, assegurando uma clara distinção entre a empresa e seus sócios, visando, principalmente, incentivar a iniciativa privada.

Porém, ao longo dos tempos, tal proteção à pessoa dos sócios e seu patrimônio pessoal acabou por se tornar quase intocável, gerando aumento de ações fraudulentas e abusos administrativos, que acabavam por lesar credores e terceiros de boa-fé.

3. ANTECEDENTES LEGISLATIVOS

Com o surgimento de inúmeros processos envolvendo prática abusiva e má-administração de sociedades empresárias, com efeitos lesivos aos credores, nosso legislador passou a inserir no ordenamento dispositivos que acatavam a possibilidade de Desconsideração da Pessoa Jurídica em casos especiais.

O Código de Defesa do Consumidor foi o primeiro texto de lei a prever expressamente a Desconsideração da Personalidade Jurídica no ordenamento jurídico brasileiro, em seu artigo 28 e parágrafos.

"Art. 28 - O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocada por má administração."

Posteriormente, surgiram, para reforçar tal posicionamento, os artigos 18 da Lei Federal nº 8.884/1994 (Lei Antitruste) e 4º da Lei Federal nº 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais), os quais transcrevemos a seguir:

Lei nº 8.884/1994

"Art. 18 - A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração."

Lei nº 9.605/1998

"Art. 4º - Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados ao meio ambiente."

4. CONCEITO - CÓDIGO CIVIL

O artigo 50 do Código Civil dispõe, in verbis:

"Art. 50 - Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica".

Fabio Ulhôa Coelho entende a Desconsideração da Personalidade Jurídica como o não conhecimento, por parte do Poder Judiciário, da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, sempre que ela for utilizada como expediente para a realização de fraude.

Para o jurista, desconhecendo-se a autonomia patrimonial, será possível responsabilizar direta, pessoal e ilimitadamente o sócio, por obrigação que, originariamente, cabia à sociedade.

Seria a Desconsideração, portanto, um instrumento de coibição do mau uso da pessoa jurídica.

5. REQUISITOS

Na leitura do artigo 50 do Código Civil, podemos identificar os requisitos permissivos da aplicação da teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, como sendo:

a) utilização abusiva e intencional da pessoa jurídica, com objetivo de escapar à obrigação legal ou contratual, mediante fraude;

b) necessidade de impedir violação de normas de Direito Societário;

c) evidência de que a sociedade é apenas "uma fachada" para pessoa física fraudar credores, agindo em proveito próprio por meio da pessoa jurídica.

Preenchidos tais requisitos, teremos inúmeras hipóteses concretas que nos conduzirão à Desconsideração da Personalidade Jurídica, sempre que sua autonomia patrimonial venha a frustrar ou dificultar o ressarcimento do credor prejudicado.

6. ASPECTOS PROCESSUAIS

O art. 596 do Código de Processo Civil estabelece que "os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade senão nos casos previstos em lei."

Os casos previstos em lei, mencionados no artigo 596, são justamente aqueles que dependem de enquadramento nos artigo 50 e 187 do Código Civil, que contemplam:

a) confusão patrimonial;

b) fraude;

c) desvio de finalidade;

d) abuso de direito;

e) exercício irregular do direito.

Assim, não poderá ter incidência isolada o referido dispositivo, eis que os parâmetros materiais, previstos no Código Civil, devem ser observados.

7. EFEITOS

Pela Teoria da Desconsideração, o juiz pode deixar de aplicar as regras de separação patrimonial entre sociedade e sócios, ignorando a existência da pessoa jurídica num caso concreto, porque é necessário coibir a fraude perpretada graças à manipulação de tais regras.

Cabe ressaltar que, a aplicação da Desconsideração da Personalidade Jurídica não desfaz o ato constitutivo da sociedade, não o invalida, nem importa na dissolução da mesma.

Trata-se, apenas e rigorosamente, de suspensão episódica da eficácia desse ato, ou seja, a constituição da pessoa jurídica não produz efeito apenas no caso concreto, permanecendo válida e inteiramente eficaz para todos os outros fins.

Portanto, não há que se falar em dissolução da sociedade. Preserva-se a Personalidade Jurídica e, em decorrência, a autonomia patrimonial da sociedade empresária para todos os demais efeitos de direito.

Esse traço é a fundamental diferença entre a Teoria da Desconsideração e os demais instrumentos desenvolvidos pelo direito para a coibição de fraudes viabilizadas através das pessoas jurídicas.

8. RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA DO ADMINISTRADOR

Com relação à aplicabilidade da teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, na matéria tributária, existem posicionamentos distintos, especialmente no que se refere ao artigo 135 do Código Tributário Nacional, in verbis:

"Art. 135 - São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:

I - as pessoas referidas no artigo anterior;

II - os mandatários, prepostos e empregados;

III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado."

Segundo alguns doutrinadores a responsabilização do referido dispositivo seria uma forma particularizada de responsabilização do administrador por atos de má-gestão, não se misturando e nem tão pouco se confundindo com a teoria da Desconsideração.

Para outros, existe uma Desconsideração da Personalidade Jurídica, de modo a tornar possível que o patrimônio do administrador que agiu de modo contrário à lei, ao estatuo social, seja responsabilizado.

Com relação à imposição da responsabilidade, a jurisprudência é majoritária ao afirmar que é necessário que a ação dos sócios, além de ser dolosa ou com culpa subjetiva, implique na insolvência da sociedade comercial, para levar à sua responsabilização pessoal.

Por outro lado, alertamos que alguns magistrados acreditam que a simples infração já enseja a responsabilidade pessoal do administrador pelos débitos tributários da sociedade, conforme demonstra o trecho a seguir:

"O sócio-gerente tem a obrigação de recolher os impostos devidos pela empresa. Se não o faz, responde pessoalmente pelo débito. (STJ - Ac. Unân. da 1ª T. publ. no DJ de 04.05.98 - Rec. Esp. 149.266-PR - Rel. Min. Garcia Vieira)."

Com o aumento das responsabilidades do administrador, decorrentes das inovações legislativas, cumpre alertar os sócios ou não-sócios, que ocupam tal posição, para que tenham maior comprometimento e diligência ao executar atos de gestão, sob pena de responsabilização pessoal.

9. JURISPRUDÊNCIA

TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA - EXTINÇÃO DA SOCIEDADE COM EXISTÊNCIA DE DÉBITO - "Execução - Penhora - Sociedade - Bens pessoais do sócio - Dissolução com existência de débito - Admissibilidade da teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Formado o título executivo judicial em face da sociedade e apurada a dissolução irregular desta, a pretensão satisfativa pode ser dirigida contra o patrimônio particular do sócio."(2º TACIVIL - Ap.s/Rev.469.245 - 5ª C.- Rel.Juiz Laerte Sampaio - j.29.01.1997 ) AASP, Ementário, 2009/3

TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA - EXTINÇÃO IRREGULAR DA SOCIEDADE - RESPONSABILIDADE DOS SÓCIOS - "Execução - Penhora - Sociedade - Bens pessoais do sócio - Teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Ante a extinção irregular da sociedade, que restou sem patrimônio para fazer face aos débitos pendentes, respondem os bens particulares dos sócios, desconsiderando-se, para esse efeito, a personalidade jurídica da devedora." ( 2º TACIVIL - Ap.s/Rev.502.922 - 6ª Câm.- Rel. Juiz Paulo Hungria - j.03.12.1997 ) AASP, Ementário, 2052/3

"PENHORA - EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL - SOCIEDADE COMERCIAL - CONSTRIÇÃO DOS BENS DOS SÓCIOS - Não cabimento - Abuso na utilização do nome social não comprovado - Hipótese de mera insuficiência de patrimônio da devedora - Desconsideração da pessoa jurídica inaplicável - Recurso improvido." (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, ACÓRDÃO: 30472, PROCESSO: 0806095-9, RECURSO: Agravo de Instrumento, ORIGEM: São João da Boa Vista, JULGADOR: 1ª Câmara, JULGAMENTO: 21.09.1998, RELATOR: Silva Russo).

"EXECUÇÃO DE SENTENÇA - DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA - INDEFERIMENTO - Para se desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade devedora e atribuir ao seu sócio a responsabilidade pelos encargos daquela, mister se faz a apresentação de prova contundente acerca do procedimento irregular ou doloso de tal pessoa. Ausente tal demonstração, improcede o pedido nesse sentido. Agravo improvido." (Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, RECURSO: AGI, NÚMERO: 197195274, DATA: 27.11.1997, ORGÃO: Segunda Câmara Cível, RELATOR: Roberto Laux, ORIGEM: Gravatai)

Fundamentos Legais: Os citados no texto.