CPMF
PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO VERIFICADOR
RESUMO: O Parecer a seguir autoriza a Secretaria da Receita Federal a Utilizar as informações obtidas no âmbito da fiscalização da CPMF para instaurar procedimento administrativo destinado a verificar a existência de obrigação tributária relativa a outros tributos e a constituir o respectivo crédito.
PARECER PGFN
Nº 1.649 de 08.01.2004
(DOU de 13.01.2004)
Utilização de informações obtidas no âmbito da fiscalização da CPMF para instaurar procedimento administrativo destinado a verificar a existência de obrigação tributária relativa a outros tributos e a constituir o respectivo crédito.
Aplicação no tempo da alteração introduzida na parte final do § 3º do art. 11 da Lei nº 9.311, de 1996, pela Lei nº 10.174, de 2001.
Solução da questão à luz do princípio tempus regit actum, consagrado no art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil e no art. 144 do CTN. Aplicação imediata da lei nova, que disciplina um efeito decorrente do inadimplemento voluntário da obrigação tributária que se prolonga no tempo, e que não institui nova hipótese de incidência tributária. Inexistência de ofensa ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada.
Possibilidade de que a complementação das informações obtidas no âmbito da fiscalização da CPMF seja realizada nos termos da Lei Complementar nº 105/2001, cuja pretensa inconstitucionalidade, além de ser incabível, não pode ser reconhecida pelos Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda.
I - Relatório Por intermédio do Memo SRF/GAB/Nº 788/2003, de 28 de abril de 2003, o Sr. Secretário-Adjunto da Secretaria da Receita Federal solicita exame e emissão de parecer sobre o tema versado na Nota Cosit nº 97, de 22 de abril de 2003, que trata da possibilidade de aplicação retroativa do § 3º do art. 11 da Lei nº 9.311, de 24 de outubro de 1996, com a redação dada pela Lei nº 10.174, de 9 de janeiro de 2001, em face do disposto no § 1º do art. 144 do Código Tributário Nacional.
2. Conforme relatado na Nota Cosit nº 97, de 2003, o § 3º do art. 11 da Lei nº 9.311, de 1996, na sua redação original, vedava expressamente que a Secretaria da Receita Federal utilizasse as informações recebidas no âmbito da fiscalização da Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira (CPMF) para constituir crédito tributário relativo a outras contribuições ou impostos. Contudo, a Lei nº 10.174, de 2001, alterou a redação do mencionado dispositivo legal, exatamente para permitir o que antes era vedado, de modo que passou a ser possível a utilização das referidas informações para fundamentar a instauração de procedimento administrativo fiscal tendente a verificar a existência de crédito tributário relativo a outros impostos e contribuições, e para embasar o lançamento necessário à constituição do crédito porventura existente.
3. A questão que está suscitando controvérsias, no âmbito dos Conselhos de Contribuintes e do Poder Judiciário, diz respeito à possibilidade de utilização das informações relativas à fiscalização da CPMF para instaurar processos administrativos com o objetivo de verificar a existência e constituir créditos tributários relativos a outros tributos cujos fatos geradores tenham ocorrido antes da vigência da Lei nº 10.174, de 2001, e é esse o tema central abordado na Nota Cosit nº 97, de 2003.
4. Com efeito, a Nota Cosit nº 97, de 2003,
noticia que, com fundamento no § 1º do art. 144 do Código Tributário
Nacional, "que permite a aplicação retroativa da legislação
que institua novos critérios de apuração ou processos de
fiscalização, ampliando os poderes de investigação
das autoridades administrativas, a SRF efetuou lançamentos relativos
a outros impostos e contribuições, além da CPMF, em relação
a período anterior à entrada em vigor da Lei nº 10.174, de
2001", mas a validade desses procedimentos está sendo contestada
pelos contribuintes junto aos Conselhos de Contribuintes e ao Poder Judiciário,
já tendo havido decisões desfavoráveis à União
proferidas pela Quarta Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes e
pela Primeira Seção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
5. Em arrazoado amplamente fundamentado, que integra a Nota Cosit nº 97,
de 2003, a Coordenação-Geral de Tributação da Secretaria
da Receita Federal sustenta que a nova redação do § 3º
do art. 11 da Lei nº 9.311, de 1996, pode ter aplicação retroativa,
do que resulta a validade dos lançamentos já realizados. Argumenta,
em síntese, que:
5.1) o princípio da irretroatividade, acolhido no art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal de 1988, não é absoluto, estando vedada a retroatividade das leis apenas quando houver violação ao direito adquirido, à coisa julgada e ao ato jurídico perfeito;
5.2) em matéria tributária, a Constituição Federal garante a irretroatividade apenas da lei que institua ou majore tributo (art. 150, inciso III, alínea "a"), mas nada obsta a retroatividade da lei tributária material que não tenha por objeto instituir ou majorar tributo, ou a retroatividade da lei tributária formal (lei que regula o modo pelo qual deve ser realizada a atividade de lançamento);
5.3) o § 1º do art. 144 do Código Tributário Nacional é norma tributária de caráter formal, que regula o lançamento enquanto procedimento, e consagra a aplicabilidade imediata da legislação tributária que institua novos critérios de apuração ou de fiscalização, que amplie os poderes de investigação das autoridades administrativas ou que outorgue maiores garantias ou privilégios ao crédito tributário, exceto para o efeito de atribuir responsabilidade tributária a terceiros;
5.4) como o § 3º do art. 11 da Lei nº 9.311, de 1996, na nova redação dada pela Lei nº 10.174, de 2001, apenas ampliou os poderes de fiscalização tributária, tratando-se de norma tributária formal, nada obsta a sua aplicação retroativa, até porque "a exceção ao princípio da irretroatividade, no caso, não prejudica o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito".
6. Enquanto a consulta da Secretaria da Receita
Federal encontrava-se em estudo, recebemos, para exame conjunto, documentação
relativa a acórdãos proferidos pelo Primeiro Conselho de Contribuintes
sobre o mesmo tema. A finalidade do envio dessa documentação é
possibilitar que o presente trabalho, além de expressar resposta à
consulta formulada pela Secretaria da Receita Federal, sirva de subsídio
à atuação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional junto
aos Conselhos de Contribuintes na matéria em questão.
7. A representação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional junto
aos Conselhos de Contribuintes encaminhou a esta Coordenação cópias
dos Acórdãos proferidos nos processos nºs 10855.003781/2001-86
e 10950.000964/2002-42, julgados, respectivamente, pelas Quarta e Primeira Câmaras
do Primeiro Conselho de Contribuintes, e ainda cópias de textos doutrinários
a respeito do tema. Além disso, o Procurador da Fazenda Nacional Dr.
Paulo Roberto Riscado Junior elaborou arrazoado que sintetiza as questões
em discussão no Primeiro Conselho de Contribuintes, cabendo destacar
o seguinte trecho:
"Apenas para permitir um melhor encaminhamento da Nota Cosit nº 97/2003,
entendo importante esclarecer o que está sendo objeto de análise
aqui nos Conselhos de Contribuintes.
A Lei 10.174/2001 permitiu à Receita Federal utilizar as informações
da CPMF, prestadas pelas instituições financeiras nos termos da
Lei 9.311/96, para instaurar procedimento administrativo visando verificar a
existência de crédito tributário, devido pelo contribuinte:
(...) Esse procedimento administrativo, na verdade, era preparatório
para a aplicação do art. 6º da Lei Complementar 105/2001,
que permite à Receita a análise das contas bancárias dos
contribuintes:
(...) Portanto, as informações da CPMF servem apenas para possibilitar
a instauração do procedimento administrativo citado no art. 6º
da Lei 105/2001. Após a análise dessas contas bancárias,
a Receita intima os contribuintes a explicar a movimentação de
valores apurada, que, normalmente, é incompatível com o patrimônio
ou com as receitas declaradas por esses contribuintes.
Se o contribuinte não prova que não há incompatibilidade,
aplica-se o art. 42 da Lei 9.430/96, que institui presunção legal
de omissão de receitas, que ocorre quando o contribuinte não comprova
a origem dos recursos creditados em sua conta bancária:
(...) Os argumentos dos contribuintes são os seguintes: A Lei 10.174/2001
estaria sendo utilizada retroativamente, o que seria proibido (consoante a Quarta
Câmara - cfr. o acórdão em anexo - , a lei acima teria estabelecido
uma nova hipótese de incidência do imposto de renda, e portanto
não poderia ser aplicada retroativamente); a Lei 105/2001, ao autorizar
ao Fisco a análise da movimentação bancária dos
contribuintes, seria inconstitucional.
Assim, a consulta seria acerca dos seguintes pontos:
1) Há, nos casos analisados pelos Conselhos de Contribuintes, aplicação
retroativa da Lei 10.174/2001? Essa Lei pode ser aplicada retroativamente? Está
correta a Quarta Câmara ao afirmar que a Lei 10.174/2001 teria criado
nova hipótese de incidência do imposto de renda?
2) 2) A Lei 105/2001, ao autorizar ao Fisco a análise da movimentação
bancária dos contribuintes, seria inconstitucional?"
8. Como se vê, são duas as questões
a serem examinadas no presente Parecer: uma a respeito da Lei nº 10.174,
de 2001, comum à Nota Cosit nº 97/2003 e aos acórdãos
do Primeiro Conselho de Contribuintes, que se complementam na fixação
do alcance do tema;
a outra sobre a Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, questão
não versada na Nota Cosit nº 97/2003, e que amplia o objeto do presente
trabalho.
II - A questão relativa à aplicação da alteração
introduzida pela Lei nº 10.174/2001
9. Ao instituir a Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira, o art. 11 da Lei nº 9.311, de 1996, atribuiu a administração da referida contribuição à Secretaria da Receita Federal (SRF), dispondo que compete ao referido Órgão fazendário as atividades de tributação, fiscalização e arrecadação da contribuição.
10. No âmbito dessa atividade de fiscalização, o § 1º do mencionado art. 11 previu a possibilidade de que a SRF requisite e proceda ao exame de documentos, livros e registros, e, ainda, de que estabeleça obrigações acessórias. O § 2º do mesmo dispositivo legal estabeleceu desde logo uma obrigação acessória que tem como destinatárias as instituições financeiras responsáveis pela retenção e recolhimento da contribuição: devem elas prestar à SRF "as informações necessárias à identificação dos contribuintes e os valores globais das respectivas operações, nos termos, nas condições e nos prazos que vierem a ser estabelecidos pelo Ministro de Estado da Fazenda".
11. Atualmente, os termos, condições e prazos para o cumprimento dessa obrigação acessória pelas instituições financeiras é matéria que está disciplinada no art. 5º da Portaria MF nº 227, de 11 de julho de 2002, que estabelece que as informações deverão ser prestadas à Secretaria da Receita Federal em meio magnético, abrangendo os dados referentes a cada trimestre do ano-calendário, devendo conter o número de inscrição do contribuinte (CPF ou CNPJ), o valor global, em cada mês, das operações sujeitas à retenção da contribuição e o valor da contribuição retida em cada período.
12. Na sua redação original, o § 3º do art. 11 da Lei nº 9.311, de 1996, estabelecia que a SRF deveria resguardar, na forma da legislação aplicada à matéria, o sigilo das informações prestadas pelas instituições financeiras no cumprimento da obrigação acessória instituída no § 2º. Além disso, o § 3º vedava a utilização dessas informações para a "constituição do crédito tributário relativo a outras contribuições ou impostos".
13. O comando do § 3º do art. 11 da Lei nº 9.311, de 1996, comportava duas obrigações distintas para a SRF, em relação às informações prestadas pelas instituições financeiras: a obrigação de efetivamente resguardar o sigilo dessas informações, cuja conseqüência imediata é o dever de não divulgá-las a terceiros; e a obrigação de não utilizar essas informações para constituir crédito tributário relativo a outras contribuições ou impostos, da qual decorre o dever de manter os dados extraíveis dessas informações restritos aos processos administrativos fiscais relativos à cobrança da própria CPMF.
14. É de cristalina percepção a autonomia entre as duas obrigações acima referidas. Além de serem distintas as conseqüências decorrentes de cada uma delas, conforme mencionado no item anterior, o dever de não utilização das informações da CPMF para constituir crédito tributário relativo a outras contribuições ou impostos não é uma restrição destinada a proteger o sigilo dessas informações, pois, a toda evidência, eventual utilização de dados que já eram de conhecimento da SRF, por esse mesmo Órgão, para constituir crédito tributário relativo a outro tributo, não acarretaria a divulgação dessas informações a terceiros, posto que o processo administrativo fiscal necessário à constituição de crédito relativo a tributo distinto da CPMF também está sujeito a sigilo, nos termos do art. 198 do Código Tributário Nacional.
15. Desse modo, é importante destacar, novamente, que o § 3º do art. 11 da Lei nº 9.311, de 1996, na sua redação original, continha duas obrigações distintas para a SRF, e que apenas a que decorre da parte inicial do seu texto está relacionada ao tema do sigilo bancário. A obrigação prevista na parte final do dispositivo, que contemplava vedação à utilização das informações recebidas no âmbito da fiscalização da CPMF para constituir crédito tributário relativo a tributo distinto, em nada se relacionava com o tema do sigilo. A função dessa vedação era única e exclusivamente limitar o exercício da atividade administrativa de lançamento pela administração tributária. Era uma norma favorável ao contribuinte, sem dúvida, mas que não se destinava a garantir o seu direito ao sigilo fiscal.
16. A Lei nº 10.174, de 2001, alterou apenas a parte final do § 3º do art. 11 da Lei nº 9.311, de 1996, ou seja, eliminou somente a limitação do exercício da atividade administrativa de lançamento de outros tributos a partir de informações recebidas no âmbito da fiscalização da CPMF, restando mantida a obrigação de preservação do sigilo fiscal. A partir do início da vigência dessa Lei, que ocorreu na data da sua publicação (10 de janeiro de 2001), o § 3º do art. 11 da Lei nº 9.311, de 1996, passou a ter a seguinte redação:
"§ 3º A Secretaria da Receita Federal resguardará, na forma da legislação aplicável à matéria, o sigilo das informações prestadas, facultada sua utilização para instaurar procedimento administrativo tendente a verificar a existência de crédito tributário relativo a impostos e contribuições e para lançamento, no âmbito do procedimento fiscal, do crédito tributário porventura existente, observado o disposto no art. 42 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996 e alterações posteriores."
17. Assente que a alteração introduzida pela Lei nº 10.174, de 2001, nada tem a ver com o tema do sigilo bancário ou fiscal, porque aqui se trata da utilização de informações a respeito da vida financeira do contribuinte pelo próprio Órgão estatal que delas já dispõe, em processo administrativo fiscal também protegido pelo sigilo, há que se examinar a questão de direito intertemporal proposta, ou seja, verificar como deve ocorrer a aplicação, no tempo, da nova redação do § 3º do art. 11 da Lei nº 9.311, de 1996.
18. O princípio geral de direito que regula a aplicação das leis no tempo é o princípio tempus regit actum. De acordo com esse princípio, os fatos devem ser regidos pela lei vigente no momento da sua ocorrência. Duas conseqüências decorrem desse princípio: em primeiro lugar, a lei nova tem em regra aplicação imediata, pois, a partir do momento em que entra em vigor, passa a disciplinar os fatos ocorridos sob a sua vigência; em segundo lugar, a lei nova não pode projetar seus efeitos para situações constituídas no passado (não pode ser retroativa), pois, se a lei só deve ser aplicada aos fatos ocorridos sob a sua vigência (tempus regit actum), não se pode aplicá-la a fatos que ocorreram antes que ela existisse e se tornasse obrigatória.
19. O direito positivo brasileiro consagra o princípio tempus regit actum como regra geral para solucionar os conflitos de leis no tempo. Com efeito, quando a própria lei nova não traz disposições especiais de direito intertemporal para regular essa matéria, é de se aplicar a norma do art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, segundo a qual "A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada". Os limites que a parte final do art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil impõe para aplicação imediata da lei nova - o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada - têm status constitucional, e devem ser respeitados não apenas pelo aplicador da lei nova, mas também pelo legislador. Nesse sentido, o inciso XXXVI do art. 5º da Constituição Federal de 1988, ao dispor que "A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".
20. É de se observar, contudo, que o critério da aplicação imediata da lei nova, consagrado no art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, pode ser afastado por lei especial que estabeleça, excepcionalmente, a aplicação retroativa da lei nova. Com efeito, o ordenamento jurídico brasileiro convive com hipóteses de retroatividade da lei nova, como a da lei penal mais benigna, a da lei tributária mais favorável em matéria de infrações, etc. Evidentemente, uma lei que venha a estabelecer a retroatividade de suas disposições não pode deixar de observar os limites constitucionais do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, salvo se o próprio sistema constitucional admitir exceções a esses limites.
21. Aspecto imprescindível, em matéria de direito intertemporal, é diferenciar a aplicação imediata e a aplicação retroativa da lei nova. Vicente Ráo, na obra "O Direito e a Vida dos Direitos", Ed. RT, Vol. 1, 4ª Edição, 1997, destina vários itens do Capítulo 14, intitulado "Conflitos das normas jurídicas no tempo", para afastar a confusão conceitual que se costuma realizar entre aplicação imediata e aplicação retroativa da lei nova. Expõe o autor que, no Direito Comparado, a vedação à aplicação retroativa das novas disposições normativas é um princípio consagrado, e que, para alguns doutrinadores, chega a ser um princípio do direito natural. E explica que a irretroatividade significa a impossibilidade de a lei nova incidir sobre relações jurídicas que se iniciaram e que se consumaram integralmente no passado, e que não projetam no presente nenhum efeito mais, porque já se extinguiram. Nesse caso, sequer existiria conflito de direito intertemporal, pois ter-se-iam relações jurídicas cuja constituição e cujos efeitos todos já teriam sido inteiramente regulados pelas normas passadas, então vigentes. O conflito, segundo o autor, existe quando as relações jurídicas se constituíram sob o império da lei anterior, mas seus efeitos continuam ocorrendo na vigência da lei nova. Qual lei aplicar a esses efeitos, a anterior, já revogada, ou a nova?
22. É exatamente nesse ponto que reside
a distinção entre aplicação imediata e aplicação
retroativa da lei nova. A aplicação imediata, que o direito positivo
brasileiro consagra como regra geral, significa a possibilidade de a lei nova
regular os efeitos das relações jurídicas constituídas
sob a égide da lei anterior que venham a ocorrer sob a vigência
da lei nova; trata-se de determinadas relações jurídicas
que, por não se terem extinguido ou constituído por completo no
passado, continuam gerando efeitos sob a vigência da lei nova, os quais
passam a ser por esta regulados. Analisando-se o direito positivo brasileiro,
é essa a solução que deverá ser adotada para os
conflitos de direito intertemporal, mantendo-se a aplicação da
lei antiga apenas nas hipóteses de ocorrência de direito adquirido,
ato jurídico perfeito ou coisa julgada. Para reforçar esses conceitos,
transcrevemos um pequeno trecho da obra de Vicente Ráo acima mencionada,
p. 373:
"Os fatos ou atos pretéritos e seus efeitos realizados sob o império
do preceito antigo não podem ser atingidos pelo preceito novo, sem retroatividade,
a qual, salvo disposição legal expressa em contrário, é
sempre proibida.
Aplica-se o mesmo princípio aos fatos pendentes e respectivos efeitos.
Assim, a parte, desses fatos e efeitos, produzida sob o domínio da norma
anterior é respeitada pela nova norma jurídica, mas a parte que
se verifica sob a vigência desta, a esta fica subordinada.
As novas normas relativas aos modos de constituição ou extinção
das situações jurídicas não devem atingir a validade
ou invalidade dos fatos passados, que se constituíram ou extinguiram,
de conformidade com as normas então em vigor.
Os efeitos desses fatos, sim, desde que se verifiquem sob a vigência da
norma superveniente, por ela são disciplinados, salvo algumas exceções.
Retroatividade e efeitos imediatos da nova norma obrigatória são
conceitos, pois, que não se confundem: enquanto aquela age sobre o passado,
estes tendem a disciplinar o presente e o futuro."
23. Estabelecidas essas premissas conceituais,
examinemos o caso concreto em questão. Lidamos com relações
jurídicas de direito obrigacional que vinculam, de um lado, a União,
credora de obrigações tributárias, e de outro os contribuintes,
devedores dessas obrigações.
Como obrigação ex lege que é, a obrigação
tributária nasce no momento em que ocorrem as circunstâncias fáticas
que a lei descreve como hábeis a gerar o seu nascimento. Desse fato singular
- o nascimento da obrigação tributária - decorrem alguns
efeitos, e o mais imediato consiste no fato de o contribuinte ficar obrigado
a adimplir voluntariamente a obrigação.
24. É fácil perceber que esse efeito
- o dever do contribuinte de adimplir a obrigação - se prolonga
no tempo, pois, enquanto a obrigação não for extinta, pelos
meios admitidos em direito, o contribuinte continua vinculado a esse dever.
De outro lado, vencido o prazo para o adimplemento voluntário da obrigação,
e configurado o inadimplemento do devedor, surge um novo efeito decorrente do
nascimento da obrigação tributária: a possibilidade de
que administração tributária exija o cumprimento forçado
da obrigação, efeito que também se prolonga no tempo, enquanto
a obrigação não for extinta. Para tanto, a legislação
exige que a administração, mediante atividade vinculada sujeita
ao contraditório e à ampla defesa (lançamento), constitua
o crédito tributário correspondente àquela obrigação.
O limite temporal para o exercício dessa atividade é o prazo de
decadência.
25. A primeira questão que se tem de enfrentar para solucionar o problema relativo à aplicação no tempo da alteração operada pela Lei nº 10.174, de 2001, consiste em definir se essa alteração regulou o nascimento da obrigação tributária ou se ela disciplinou os efeitos que decorrem do nascimento da obrigação tributária. No primeiro caso - nascimento da obrigação tributária -, tem-se um fato jurídico que ocorre em um momento determinado no tempo, tornando- se definitivamente consumado nesse momento, de modo que há de ser regido pela lei vigente nessa ocasião. No segundo caso - efeitos que decorrem do nascimento da obrigação tributária -, tem-se relações jurídicas que se prolongam no tempo enquanto não ocorrida a decadência do direito de constituir o crédito tributário (conforme visto no item 24, acima), e, em princípio, podem elas ser alcançadas por uma lei nova, desde que respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
26. De acordo com a Nota Cosit nº 97, de 2003,
a Lei nº 10.174, de 2001, ao permitir que a SRF passe a utilizar as informações
recebidas no âmbito da fiscalização da CPMF para instaurar
procedimento administrativo tendente a verificar a existência de crédito
tributário relativo a outros tributos e lançar o tributo porventura
existente, operou uma ampliação dos poderes de fiscalização
tributária.
Desse modo, a SRF entende que a lei nova em exame regulou um dos efeitos que
decorrem do nascimento da obrigação tributária, que é
o de permitir que a administração tributária exija o cumprimento
forçado da obrigação não adimplida voluntariamente
pelo devedor. De fato, os poderes de fiscalização tributária
são inerentes ao direito de exigir o adimplemento da obrigação
tributária, pois a fiscalização é atividade imprescindível
para que o credor possa verificar se a obrigação tributária
realmente ocorreu, e se o devedor está inadimplente, pressupostos inafastáveis
para o exercício do direito de cobrar.
27. Contudo, no julgamento do processo nº
10855.003781/2001-86, a Quarta Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes
entendeu, por maioria, que a Lei nº 10.174, de 2001, regulou o próprio
nascimento da obrigação tributária, pois teria estabelecido
uma nova hipótese de incidência do imposto de renda e de outros
tributos, já que apenas a partir dessa Lei teria passado a ser possível
a tributação "dos depósitos resultantes dos dados
colhidos da arrecadação da CPMF". Eis a fundamentação
desenvolvida no voto vencedor:
"... a Lei nº 10.174/2001 é norma de conteúdo material,
que autoriza o lançamento do imposto de renda e demais tributos com base
nas informações colhidas dos recolhimentos da CPMF. Especificamente
em relação ao imposto de renda, a nova lei, inclusive, estabeleceu
a forma de tributação, que ocorrerá nos termos e condições
do artigo 42 da Lei nº 9.430/96.
Ou seja, não foram ampliados os poderes fiscalizatórios. Foi autorizada
uma nova forma de tributação, admitindo uma nova presunção
legal de omissão de receita que se insere no mecanismo introduzido pelo
artigo 42 da Lei nº 9.430/96.
(...) É fora de dúvida que a Lei nº 10.174/2001 não
é uma norma adjetiva. A Lei nº 10.174/2001 não estabelece
um novo rito processual.
A Lei nº 10.174/2001 não fixa ou amplia poderes de investigação.
A Lei nº 10.174/2001 autoriza, isto sim, uma "nova" forma de
tributação do imposto de renda.
Isto tudo quer dizer que, a redação original da Lei nº 9.311/96
também não previa uma norma de procedimento. Pelo contrário,
enquanto durou a redação primitiva da Lei nº 9.311/96 era
vedado o lançamento do imposto de renda e demais tributos sobre a base
de incidência desvendada pelos recolhimentos da CPMF, conforme se lê
de sua disposição literal, cujos grifos não são
do original:
"Art. 11 - (...)
§ 3º - A Secretaria da Receita Federal
resguardará, na forma da legislação aplicável à
matéria, o sigilo das informações prestadas, vedada sua
utilização para a constituição do crédito
tributário relativo a outras contribuições ou impostos'.
No entanto, nunca foi afastada a possibilidade de ser constituído o crédito
tributário do imposto de renda através da intimação
de instituições financeiras. Mas, não havia previsão
legal para a tributação dos depósitos resultantes dos dados
colhidos da arrecadação da CPMF. Ou seja, os dados obtidos pela
fiscalização da CPMF, enquanto durou a redação original
da Lei nº 9.311/96, não estavam sujeitos ao imposto de renda, muito
embora os valores dos depósitos bancários pudessem ser objeto
de fiscalização e lançamento na forma do art. 42 da Lei
nº 9.430/96.
Somente a partir da Lei nº 10.174/2001 é que passou a estar legalmente
descrita esta nova hipótese de incidência do imposto de renda (e
de outros tributos), passando a ser lícita a tributação
dos mesmos valores advindos do cruzamento de dados dos recolhimentos da CPMF,
ainda que se utilize dos mesmos meios de determinação da base
de cálculo.
É por esta razão que a Lei nº 10.174/2001 inovou a sistemática
de tributação do imposto de renda e, por esta mesma razão,
somente pode ser aplicada a eventos futuros, obedecidos os princípios
constitucionais da irretroatividade e da anterioridade da lei tributária.
Esta é a única interpretação possível das
inovações instituídas pela Lei nº 10.174/2001, sob
pena de serem desprestigiados os princípios gerais do direito relativos
à segurança jurídica.
A propósito, cabe uma indagação: que inovação
de procedimento foi adotada se a fiscalização, com apoio em reiteradas
decisões deste Conselho, sempre teve acesso aos dados bancários
dos contribuintes. Fica claro, mais uma vez, que a Lei nº 10.174/2001 não
trouxe mera inovação de procedimento." (os destaques são
do original)
28. O entendimento defendido no precedente acima mencionado parte do pressuposto de que a hipótese de incidência tributária abrangeria, no âmbito dos seus aspectos essenciais (pessoal, material, temporal e espacial) "as formas de desvendamento da base imponível". Com efeito, deflui da fundamentação acima transcrita que, independentemente de a base de cálculo de determinado tributo já poder ser extraída de valores de depósitos bancários acessíveis à administração tributária mediante solicitação diretamente formulada às instituições financeiras, o fato de a Lei nº 10.174, de 2001, ter permitido uma nova forma de acesso a esses valores, a partir de informações novas, provenientes da fiscalização da CPMF, seria suficiente para constituir hipótese de incidência tributária nova. Isso significa que, de acordo com o referido precedente, as formas de acesso às informações necessárias à apuração da base imponível de determinado tributo constituiriam um traço integrante da respectiva hipótese de incidência tributária, e suficiente para criar hipótese de incidência nova.
29. Entretanto, não há como acolher tal entendimento.
30. Ao tratar dos aspectos da hipótese de
incidência tributária, na obra "Hipótese de Incidência
Tributária", Malheiros Editores, 5ª Edição, 1997,
Geraldo Ataliba conceitua a hipótese de incidência tributária
como "a descrição legislativa (necessariamente hipotética)
de um fato a cuja ocorrência in concretu a lei atribui a força
jurídica de determinar o nascimento da obrigação tributária"
(p. 69).
Como norma que disciplina o nascimento da obrigação tributária,
a hipótese de incidência, ao descrever o fato que faz nascer essa
obrigação, deverá necessariamente contemplar todos os seus
elementos essenciais.
31. Assim, se a obrigação, para a
teoria geral do direito, é um vínculo jurídico que se estabelece
entre devedor e credor de modo que o primeiro fica obrigado a prestar ao segundo
uma determinada prestação, é evidente que a hipótese
de incidência tributária, ao disciplinar o nascimento da obrigação
correspondente, deverá fixar os critérios para a identificação
do credor e do devedor (aspecto pessoal), os critérios identificadores
da prestação (aspecto material), e, ainda, o momento em que o
vínculo jurídico se estabelece entre credor e devedor (aspecto
temporal). Além disso, menciona-se a necessidade de que a hipótese
de incidência tributária identifique o lugar em que deve ser considerada
nascida a obrigação (aspecto espacial).
32. O argumento que constitui o fundamento central do precedente em exame, de
que as formas de desvendamento da base de cálculo de determinado tributo
integram a respectiva hipótese de incidência tributária,
no sentido de consistirem elemento suficiente para diferenciar uma hipótese
de incidência de outra, relaciona-se com o aspecto material da hipótese
de incidência, pois diz respeito à apuração da base
imponível.
33. Contudo, Geraldo Ataliba, na obra já citada, ensina que o aspecto material da hipótese de incidência tributária tem apenas dois atributos: a base imponível e a alíquota. No dizer do mesmo autor, a base imponível "é uma perspectiva dimensível do aspecto material da h.i. que a lei qualifica, com a finalidade de fixar critério para a determinação, em cada obrigação concreta, do quantum debeatur" (p. 97); já a alíquota constitui "um critério indicativo de uma parte, fração - sob a forma de percentual, ou outra - da base imponível" (p. 101). Esses dois atributos do aspecto material da hipótese de incidência tributária são, portanto, grandezas, ou seja, mensuram o valor de algo. A base imponível dimensiona um valor intrinsecamente relacionado ao fato que autoriza a tributação; a alíquota mensura uma fração desse valor, uma quota, pois ao Estado deve ser destinada apenas uma parte da riqueza dos contribuintes. Da combinação da base de cálculo e da alíquota chega-se ao quantum debeatur, ou seja, define-se qual é a prestação objeto da obrigação tributária.
34. Como se vê, os atributos do aspecto material da hipótese de incidência tributária não cuidam das formas de "desvendamento" da base imponível. E isso porque a forma de apuração da base imponível é um elemento meramente acidental, e não essencial, à definição do objeto da obrigação tributária (quantum debeatur). Ademais, as formas de apuração da base imponível não encerram uma grandeza, ou seja, não possuem natureza dimensível que possa caracterizá- las como atributo do aspecto material da hipótese de incidência tributária. Com efeito, se o acesso aos valores dos depósitos bancários de determinado contribuinte será feito a partir de informações prestadas diretamente pelas instituições financeiras por solicitação da administração tributária, ou se será feito a partir de informações prestadas no âmbito da fiscalização da CPMF em cumprimento de obrigação acessória, é circunstância que em nada influi no valor do tributo devido, pois não é mensurável, não é indicativa de grandeza, não se refere à prestação da obrigação tributária.
35. Assim, não se pode considerar que a introdução de uma nova forma de apuração da base imponível de determinado tributo constitui estabelecimento de hipótese de incidência nova em relação a esse tributo, se essa matéria não integra o aspecto material da hipótese de incidência. Se a nova disposição legislativa não interferir nem com o valor da obrigação, nem com a definição do sujeito passivo - como é o caso da Lei nº 10.174, de 2001 -, não será possível considerar que estabeleceu hipótese de incidência nova.
36. Além disso, há evidente equívoco na afirmação, constante do voto que fundamentou o acórdão em exame, de que a Lei nº 10.174, de 2001, introduziu nova forma de tributação por ter admitido uma nova presunção legal de omissão de receita. De fato, é irrelevante para a caracterização da presunção legal de omissão de receita ou rendimento disciplinada no art. 42 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, que o acesso às informações demonstrativas da existência dos depósitos bancários que podem caracterizar essa omissão se dê em razão de solicitação direta realizada pela SRF às instituições financeiras, ou de dados obtidos no âmbito da fiscalização da CPMF. Qualquer que seja a forma de obtenção dessas informações, a presunção de omissão de receita ou rendimento será sempre a mesma, e apenas restará configurada se, após a obtenção das informações, a administração tributária intimar o contribuinte para comprovar a origem dos recursos mediante documentação hábil e idônea, e este não o fizer. Assim, a forma de obtenção das informações acerca da existência de depósitos bancários em conta corrente vinculada ao contribuinte constitui dado anterior e irrelevante para a caracterização da presunção de omissão de receita ou rendimento, pois o art. 42 da Lei nº 9.430, de 1996, não cuida dessa matéria, sequer disciplina esse momento anterior da fiscalização tributária.
37. Resta ressaltar, ainda, que as afirmações
contidas no voto vencedor do acórdão em exame, de que "não
havia previsão legal para a tributação dos depósitos
resultantes dos dados colhidos na arrecadação da CPMF" e
de que "os dados obtidos pela fiscalização da CPMF, enquanto
durou a redação original da Lei nº 9.311/96, não estavam
sujeitos ao imposto de renda" também laboram em evidente equívoco.
Com efeito, os depósitos bancários que autorizam a tributação
por presunção de omissão de receita ou rendimento, na hipótese
do art. 42 da Lei nº 9.430, de 1996, não são resultado dos
dados colhidos na arrecadação da CPMF. Esses depósitos
podem ser resultado de outras causas: remuneração paga ao contribuinte
por prestação de serviços, empréstimo realizado
ao contribuinte por força de contrato, valor depositado equivocadamente
na conta corrente do contribuinte, dentre outros casos. O que os dados colhidos
na arrecadação da CPMF demonstram é a possível existência
desses depósitos, mas esses dados, que são meras informações,
não constituem a causa dos depósitos. Assim, não são
os dados obtidos pela fiscalização da CPMF que serão tributados
pelo imposto de renda, até porque a utilização de dados
provenientes da fiscalização da CPMF não constitui fato
imponível do imposto de renda. Esses dados apenas indicam a possibilidade
de existência de receitas ou rendimentos percebidos pelo contribuinte,
estas sim passíveis de serem tributadas, se presentes os requisitos legais
para tanto.
38. Demonstrado o equívoco das conclusões a que chegou a Quarta
Turma do Primeiro Conselho de Contribuintes no julgamento do processo nº
10855.003781/2001-86, volta-se ao exame da questão proposta no item 25,
supra, deste Parecer, que consiste em definir se a alteração operada
pela Lei nº 10.174, de 2001, regulou o nascimento da obrigação
tributária ou os efeitos que decorrem do nascimento da obrigação
tributária.
39. Razão assiste à Secretaria da Receita Federal, quando sustenta que a Lei nº 10.174, de 2001, regulou os poderes de fiscalização da administração tributária, aspecto relacionado a um dos efeitos decorrentes do nascimento da obrigação tributária, que consiste em permitir que o credor da obrigação tributária não adimplida voluntariamente exija o seu cumprimento compulsório.
40. Com efeito, a redação dada pela Lei nº 10.174, de 2001, à parte final do § 3º do art. 11 da Lei nº 9.311, de 1996, é explícita no sentido de que as informações obtidas no âmbito da fiscalização da CPMF poderão ser utilizadas para instaurar procedimento administrativo tendente a verificar a existência de crédito tributário relativo a outros tributos, que nada mais é do que um procedimento administrativo de fiscalização. E a fiscalização, conforme já afirmado acima, é uma atividade exercida pela administração tributária com vistas a investigar a ocorrência de eventual obrigação tributária nascida e não adimplida voluntariamente. Ela constitui o início do procedimento administrativo de lançamento, que objetiva verificar se a obrigação tributária realmente ocorreu e, em caso afirmativo, torná-la exigível, mediante a constituição do crédito tributário.
41. Não há um momento único
e específico para a realizar a fiscalização. Trata-se de
uma atividade que se prolonga no tempo, assim como se prolonga no tempo o direito
de exigir o adimplemento da obrigação tributária não
cumprida voluntariamente pelo contribuinte.
Enquanto a obrigação tributária não adimplida possa
ser exigida pela Administração, esta está autorizada a
fiscalizar, dando início ao procedimento administrativo necessário
à constituição do crédito tributário. Portanto,
os limites temporais ao exercício da atividade de fiscalização
coincidem com os limites temporais da atividade de constituição
do crédito tributário (prazo de decadência).
42. Ora, se, enquanto não ultimado o prazo de decadência para a constituição do crédito tributário, a Administração está autorizada a fiscalizar a ocorrência da obrigação nascida no passado, é evidente que a lei nova que venha a ampliar os poderes de fiscalização pode atingir os efeitos decorrentes de uma obrigação tributária nascida antes do início da sua vigência, já que esses efeitos - o poder de exigir, que abrange o correlato poder de fiscalizar - se prolongam no tempo.
43. Considerando que o ordenamento positivo brasileiro consagra, para solucionar conflitos de direito intertemporal, o critério da aplicação imediata da lei nova, é de se concluir que, em princípio, a alteração introduzida pela Lei nº 10.174, de 2001, há de ser aplicada imediatamente, de modo que a Secretaria da Receita Federal, a partir do início da sua vigência, estaria autorizada a utilizar as informações obtidas no âmbito da fiscalização da CMPF para dar início ao procedimento administrativo de lançamento de outros tributos, ainda que relativos a obrigações tributárias nascidas antes do advento dessa nova lei.
44. Essa solução também decorre do art. 144 do Código Tributário Nacional, que contempla dois critérios de direito intertemporal distintos a respeito do lançamento (um no caput e o outro no § 1º) que nada mais são do que a confirmação do princípio geral tempus regit actum.
45. Com efeito, quando o caput do art. 144 do CTN dispõe que "o lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriormente modificada ou revogada", consagra a aplicação do princípio tempus regit actum em relação ao nascimento da obrigação tributária, pois, se esta é um fato jurídico que se aperfeiçoa em um momento certo e definido, rege-se pela lei vigente nesse momento, não sendo atingida por lei superveniente, ainda que o ato administrativo que reconhecer e declarar a existência dessa obrigação - o lançamento - seja praticado posteriormente. Por outro lado, quando o § 1º desse mesmo dispositivo estabelece que "Aplica-se ao lançamento a legislação que, posteriormente à ocorrência do fato gerador da obrigação, tenha instituído novos critérios de apuração ou processos de fiscalização, ampliando os poderes de investigação das autoridades administrativas...", determina a aplicação do mesmo princípio tempus regit actum, mas agora em relação a um dos efeitos que decorre do nascimento da obrigação tributária, consistente na possibilidade de que o credor exija o cumprimento compulsório da obrigação inadimplida, situação jurídica que se prolonga no tempo, de modo que, estando ainda pendente quando do advento da lei nova, passa a ser por ela disciplinada.
46. bserve-se que, tanto o caput, quanto o § 1º do art. 144 do CTN, consagram o critério da aplicação imediata da lei nova (tempus regit actum). O que os distingue é que o fato regulado no caput do dispositivo ocorre, de regra, em um momento certo e determinado, de modo que, sendo definitivamente constituído sob a égide de determinada lei, não é atingido pelas leis subseqüentes; de outro lado, a atividade regulada no § 1º do dispositivo, que envolve um dos efeitos do fato a que se refere o caput, se prolonga no tempo, sendo atingida pelas alterações normativas posteriores, desde que observados os limites constitucionais do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada. Assim, o art. 144 do CTN não estabelece hipóteses de aplicação retroativa da legislação tributária, quer no caput, quer no § 1º, pois não pretende que a lei nova seja aplicada a fatos já definitivamente constituídos sob a égide da lei anterior. O art. 144 do CTN apenas evidencia como deve ser aplicado o princípio tempus regit actum em matéria de lançamento, no que se refere aos seus dois aspectos (ato declaratório da existência da obrigação tributária e atividade constitutiva do crédito tributário, esta última envolvendo o poder de fiscalização).
47. Existem precedentes do Poder Judiciário
reconhecendo que a alteração introduzida pela Lei nº 10.174,
de 2001, tem aplicação mesmo no lançamento relativo a obrigações
tributárias cujos fatos imponíveis tenham ocorrido antes do advento
dessa nova Lei.
No TRF da 3ª Região, há três julgados, todos de 2003,
da Sexta Turma, Relator Juiz Mairan Maia (Apelações em Mandado
de Segurança nºs 2001.61.00026901-8 e 2001.61.00013749-7 e Agravo
de Instrumento nº 2001.03000382026). Embora a ementa dos julgados, que
é praticamente a mesma, se refira à retroatividade da Lei, há
expressa menção à aplicação imediata da lei
nova aos fatos pendentes, revelando a incidência do § 1º do
art. 144 do CTN:
"TRIBUTÁRIO - INOVAÇÃO EM SEDE RECURSAL - UTILIZAÇÃO DE DADOS DA CPMF PARA O FIM DE FISCALIZAÇÃO TRIBUTÁRIA - CONSTITUCIONALIDADE - RETROATIVIDADE DA LEI - POSSIBILIDADE. 1. A matéria preliminar argüida na apelação consiste em inovação em sede recursal, razão pela qual dela não se conhece. 2. A verificação da regularidade na prestação de informações concernentes ao recolhimento de tributos e contribuições, a partir de dados relativos à movimentação financeira do contribuinte, encontra respaldo no art. 145, § 1º, segunda parte, da Constituição Federal. 3. Ausência de violação ao direito à privacidade, bem assim ao sigilo bancário. 4. A Constituição Federal de 1988 não veda a eficácia retroativa da norma, condiciona-a tão-somente, à observância do preceito inserto em seu art. 5º, inciso XXXVI.
5. Enquanto não decaído o direito do fisco em constituir os créditos tributários de sua competência, as situações jurídicas caracterizam- se como fatos pendentes, estando, portanto, sujeitas à incidência da norma vigente no momento da atividade fiscalizatória, desde que não configurada alguma das hipóteses previstas no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, a obstar a incidência dos efeitos retroativos da lei." (negritamos).
48. No TRF da Segunda Região, há
um precedente em Habeas Corpus, envolvendo crime contra a ordem tributária,
cuja ementa é bem expressiva quanto à aplicação
no tempo da Lei nº 10.174, de 2001. Trata-se do processo nº 2001.02.01046658-7,
Relator Juiz André Fontes, julgado em 05/03/2002. Transcrevemos o item
5 da ementa:
"5. A Lei 10.174-01 alterou o art. 11, §
3º, da Lei 9.311-96, para admitir a utilização das informações
fiscais de que disponha a Receita Federal - o que, até então,
não era permitido - sem que isso autorize a conclusão de que os
dados concernentes a fatos anteriores estão acobertados de forma absoluta,
como bem concluiu o Juiz Federal Substituto José Eduardo do Nascimento:
"Poderia ser negada a interceptação telefônica com
base na Lei 9296/96 pelo tão só fato de o crime haver sido praticado
antes de sua entrada em vigor? Creio que não, pois não possui
o indivíduo direito adquirido contra os meios de investigação
que vierem a ser estabelecidos pela legislação, desde que não
afetem a relação de direito material (crime e tributo).
(...) Ora, o conteúdo específico do princípio da irretroatividade é impedir que o Estado sancione condutas que ao seu tempo eram lícitas; não impedir que o Estado possa elaborar técnicas cada vez mais eficazes no combate à criminalidade que também é cada vez mais refinada.".
49. Há que se destacar, ainda, que a aplicação imediata da alteração introduzida pela Lei nº 10.174, de 2001, de modo a atingir a atividade de lançamento de obrigações tributárias cujos fatos geradores tenham ocorrido mesmo antes da vigência dessa nova Lei, não é inerentemente ofensiva ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada.
50. Com efeito, como a obrigação tributária é ex lege, e não deriva da manifestação da vontade, não há que se falar na existência de ato jurídico perfeito a regular os limites do exercício da atividade de fiscalização pela administração tributária. A disciplina dessa atividade é eminentemente normativa, e pode a lei nova ampliar ou restringir os poderes de fiscalização, sem ferir situação jurídica já consolidada em ato jurídico perfeito.
51. Quanto ao direito adquirido, também
não se configura a ofensa. Realmente, não é razoável
conceber que a garantia do direito adquirido conceda, a quem a invoca, o direito
de não ser investigado pelas autoridades competentes em virtude da possível
prática de um ato que lhe gera obrigações. A garantia do
direito adquirido é estabelecida em prol de quem está no gozo
de uma situação jurídica amparada pelo ordenamento jurídico,
ou seja, em favor de quem se julga titular de um direito já constituído,
e que se encontra em risco de ser atingido em sua situação jurídica
consolidada por norma posterior modificativa do ordenamento jurídico.
É da essência da garantia do direito adquirido a proteção
de uma situação jurídica regular.
52. Ora, o contribuinte que, ante o nascimento
de determinada obrigação tributária que o vincula como
devedor, deixa de adimplir voluntariamente essa obrigação, não
se encontra em uma situação jurídica regular perante o
Direito. Desse modo, não pode invocar a garantia do direito adquirido
para se eximir de ser fiscalizado de uma forma mais ampla pela administração
tributária, no que se refere a essa situação. Também
aqui, a lei nova que amplia os poderes de fiscalização não
se destina a violar uma situação jurídica já consolidada
em favor do contribuinte, pois não se pode admitir que determinada pessoa
tenha o direito consolidado de não ser investigado de uma forma mais
efetiva pela violação de um eventual dever jurídico.
Se assim o fosse, a garantia constitucional do direito adquirido, ao contrário
de proteger situações tuteladas pela ordem jurídica, acabaria
fragilizando a força vinculante do ordenamento, posto que protegeria
possíveis violações ao Direito. Não é essa
a finalidade da garantia constitucional.
53. Como bem observado no precedente do TRF da 2ª Região proferido em Habeas Corpus, de cuja ementa transcrevemos um pequeno trecho, a questão não é restrita ao Direito Tributário. No Direito Processual Penal, foram vários os diplomas legais baixados nos últimos anos com o objetivo de ampliar os poderes investigatórios das autoridades públicas. Nesse sentido, pode-se mencionar a Lei do Crime Organizado (Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995), a Lei das Interceptações Telefônicas (Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996), e ainda, mais recentemente, a nova Lei de Tóxicos (Lei nº 10.409, de 11 de janeiro de 2002). Todas elas ampliaram os poderes de investigação na esfera processual penal, sem que se tenha cogitado da impossibilidade da sua aplicação para a investigação de infrações penais ocorridas antes de essas Leis entrarem em vigor, com espeque na existência de direito adquirido de não ser investigado de uma forma mais efetiva pelo Estado. O direito adquirido não tem por finalidade proteger os cidadãos contra o exercício da atividade estatal de investigação e fiscalização, pois tal atividade também se destina a proteger a própria ordem jurídica. O que o direito exige é que essa atividade estatal seja realizada com observância dos meios lícitos e legítimos, e não que ela seja exercida apenas com os meios admitidos no momento da prática do ato ou da ocorrência do fato investigado.
54. Quanto à coisa julgada, não parece que a aplicação imediata da Lei nº 10.174, de 2001, nos termos do § 1º do art. 144 do CTN, possa ocasionar, em si mesma, ofensa a esse instituto. Com efeito, em princípio, a aplicação dessa nova norma redundará na instauração de procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do nascimento de determinada obrigação tributária ainda não adimplida e não questionada administrativamente ou em juízo pelo contribuinte. Assim, apenas na remota hipótese de existir decisão transitada em julgado em favor do contribuinte a respeito da mesma obrigação tributária que se objetiva constituir, que de alguma forma impeça o exercício da atividade do lançamento, é que se poderá cogitar de ofensa à coisa julgada. Mas trata-se de uma questão que deve ser examinada caso a caso, e que não é suficiente, portanto, para impedir a aplicação imediata da alteração introduzida pela Lei nº 10.174, de 2001, como regra geral.
55. Finalmente, resta enfrentar a questão relativa ao § 2º do art. 144 do CTN, invocado no precedente da Quarta Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes como óbice à aplicação imediata da Lei nº 10.174, de 2001, ao imposto de renda, na hipótese de se considerar que essa Lei tem natureza procedimental, entendimento ora adotado.
56. Transcrevemos o texto integral do art. 144
do CTN, para permitir o exame preciso da questão:
"Art. 144. O lançamento reporta-se à data da ocorrência
do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então vigente,
ainda que posteriormente modificada ou revogada.
§ 1º Aplica-se ao lançamento a legislação que, posteriormente à ocorrência do fato gerador da obrigação, tenha instituído novos critérios de apuração ou processos de fiscalização, ampliado os poderes de investigação das autoridades administrativas, ou outorgado ao crédito maiores garantias ou privilégios, exceto, neste último caso, para o efeito de atribuir responsabilidade tributária a terceiros.
§ 2º O disposto neste artigo não se aplica aos impostos lançados por períodos certos de tempo, desde que a respectiva lei fixe expressamente a data em que o fato gerador se considera ocorrido."
57. O precedente da Quarta Câmara do Primeiro Conselho de Contribuinte defende que a doutrina tem interpretado o § 2º do art. 144 do CTN como uma ressalva ao § 1º do mesmo artigo, de modo que, nos impostos lançados por certos períodos de tempo, como seria o caso do imposto de renda, haveria de prevalecer a regra do caput do art. 144, mesmo em relação aos aspectos formais e procedimentais do lançamento, não se lhes aplicando de imediato a legislação nova. O voto vencedor transcreve dois trechos doutrinários a respeito do tema.
58. Contudo, a doutrina não é uníssona
nesse sentido. Ao comentar o § 2º do art. 144 do CTN, Ruy Barbosa
Nogueira ressalta, na obra "Curso de Direito Tributário", Ed.
Saraiva, 14ª Edição, 1995, p. 230, que o objetivo desse dispositivo
é explicitar que, nos impostos lançados por períodos certos
de tempo, considera-se ocorrido o fato gerador na data fixada pela lei respectiva,
de modo que apenas a partir dessa data teria início o decurso do prazo
decadencial para a realização do lançamento. Isso significa
que o § 2º do art. 144 do CTN não estaria fixando uma regra
diferenciada de direito intertemporal para aspectos procedimentais do lançamento
(em outras palavras, não estaria excepcionando a regra do § 1º
do art. 144), mas apenas destacando que, a depender da lei específica
que disciplina cada tributo, a data da ocorrência do fato gerador pode
coincidir ou não com a data da ocorrência do fato descrito na hipótese
de incidência tributária, e esse aspecto é relevante para
a definição do início do curso do prazo decadencial. Eis
o trecho da obra de Ruy Barbosa Nogueira que enfrenta a questão (obra
citada, pp. 228 a 230):
"Estudada previamente a natureza jurídica do lançamento,
como ato declaratório, vejamos agora, como comprovação
de que ele tem a natureza declaratória, a implicação ou
efeitos dessa mesma natureza. Dela resultam conseqüências ou efeitos
jurídicos de grande importância teórica e prática,
sobre as obrigações tributárias para a aplicação
da lei no tempo, pois é nesse campo do Direito Intertemporal que deveremos
ter em conta sempre a data do fato gerador e não a do lançamento,
no que diz respeito ao momento da criação, modificação
ou extinção da obrigação tributária.
Assim, todos os índices de cálculo para a apuração
da obrigação tributária, como os valores de incidência
e alíquotas, devem ser contemporâneos ao fato gerador e não
ao lançamento.
(...) É comum encontrar-se lançamento feito hoje baseado em lei
já revogada, mas relativo a fato gerador ocorrido na vigência da
lei tributária e que apenas fora omitido pelo contribuinte.
O início da decadência, o chamado termo inicial da decadência
do direito de lançar é contado a partir da data do fato gerador,
isto é, da ocorrência da relação fática que,
em face da lei, dá nascimento à obrigação tributária.
Esta regra é tão precisa que o § 2º do art. 144 do CTN
deixa também claro que quando se tratar de impostos lançados por
períodos certos de tempo, como é o caso do imposto de renda lançado,
considera- se a data do fato gerador a fixada pela lei respectiva.
Assim, por exemplo, para o início da decadência no caso o imposto
de renda em razão de ordem técnica e específica daquele
tributo (sistema de ano-base), a lei do imposto de renda fixa como termo inicial
da decadência do direito de proceder ao lançamento a 'expiração
do ano financeiro a que corresponder o imposto'." (negritamos)
59. Como se vê, para Ruy Barbosa Nogueira o § 2º do art. 144 do CTN trata de matéria referente à data da ocorrência do fato imponível, e não de matéria relativa aos aspectos procedimentais do lançamento, que abrangem a atividade de fiscalização. Assim, não há como pretender que o § 2º do art. 144 do CTN esteja a excepcionar o § 1º do mesmo dispositivo. O § 2º trata de matéria relacionada com o caput do art. 144, e não com o § 1º.
60. Comentando o dispositivo, Luciano Amaro enfrenta com precisão a questão, destacando, assim como Ruy Barbosa Nogueira, que o § 2º do art. 144 do CTN trata do momento em que se deve considerar ocorrido o fato gerador de determinados tributos específicos, para efeito de se definir qual é a lei aplicável em relação aos elementos constitutivos da obrigação tributária. Conclui Luciano Amaro que, na verdade, o § 2º do art. 144 do CTN não estabelece uma exceção à regra geral do caput do art. 144 do CTN, mas apenas cuida de uma hipótese especial de aplicação da regra de que os elementos da obrigação tributária regem-se pela lei vigente no momento da ocorrência do fato gerador. É o que se pode conferir no seguinte trecho da sua obra "Direito Tributário Brasileiro", Ed. Saraiva, 5ª Edição, 2000, p. 331:
"O § 2º dá uma volta de 360 graus e chega ao ponto de partida, pois, ao pretender excepcionar a norma do caput para os tributos lançados por períodos certos de tempo, acaba estabelecendo, também aí, a aplicação da lei vigente no momento do fato gerador. Se se tratar, por exemplo, de imposto sobre o patrimônio, cobrado por períodos anuais, e a lei dispuser que o fato gerador se considera ocorrido a cada dia 1º de janeiro (ou 30 de junho ou 31 de dezembro, ou qualquer outro dia), a lei aplicável será aquela que (à vista dos princípios constitucionais e das regras de vigência e aplicação das leis no tempo) estiver em vigor e for eficaz naquela data; ou seja, estarse- á aplicando a lei vigente no momento da ocorrência do fato gerador, que é exatamente o que quer o caput do artigo, aparentemente excepcionado pelo parágrafo."
61. Note-se que o segundo trecho doutrinário sobre o tema invocado pelo voto vencedor do precedente em análise, de Sacha Calmon Navarro de Coelho, também menciona que o § 2º do art. 144 do CTN relaciona-se com o tema disciplinado no caput do mesmo dispositivo, e não com o § 1º. O exame integral da lição do referido autor, na obra Curso de Direito Tributário Brasileiro, Ed. Forense, 6ª Edição, 2001, p. 656, demonstra com maior precisão o ora afirmado:
"O § 2º é óbvio. Pretende
dizer que o caput do artigo é desnecessário para aqueles impostos
cujo dia do fato gerador é conhecido, porquanto a própria lei
define a data da sua ocorrência.
Conveniente aqui pensar no IPTU e no IPVA, e no imposto de renda também.
Ocorre, porém, uma curiosidade. O dia do fato gerador dos impostos que
são periodicamente lançados, nunca é expressamente designado
nas leis. No imposto de renda, tirante as incidências únicas, tem-se
por assente que o fato gerador ocorre no último segundo o último
minuto do dia 31 de dezembro do ano-base (1º de janeiro a 31 de dezembro
= periodicidade). No IPTU e no IPVA, o dia é 1º de janeiro de cada
ano. Quem estiver cadastrado neste dia é lançado como devedor.
O aspecto temporal ou o momento em que devemos considerar ocorrida a hipótese
de incidência dos tributos (fato gerador ou fato jurígeno), é
muito importante. A uma, porque delimita a legislação que deve
ser aplicada (anterior ao início do fato gerador), tornando eficazes
os princípios da legalidade, anterioridade e irretroatividade da lei
tributária. A duas, porque indica ao administrador os critérios
de sua atuação, conforme a lei..."
62. Como se vê, parte expressiva da doutrina
sustenta que o § 2º do artigo 144 do CTN cuida do tema da definição
do momento da ocorrência do fato gerador, em determinados tributos, aspecto
que se relaciona, do ponto de vista do direito intertemporal, com o caput do
art. 144, e não com o seu § 1º. Trata-se do entendimento mais
correto.
Com efeito, em momento algum o texto do § 2º do art. 144 do CTN se
refere a aspectos procedimentais do lançamento, ou à fiscalização
da ocorrência do fato imponível de determinada obrigação
tributária.
Assim, esse dispositivo não constitui óbice à aplicação
imediata da alteração introduzida no § 3º do art. 11
da Lei nº 9.311, de 1996, pela Lei nº 10.174, de 2001.
,
63. Feitas todas essas considerações, torna-se possível
responder às perguntas formuladas no arrazoado elaborado pela representação
da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional junto aos Conselhos de Contribuintes,
atinentes ao tema da aplicação no tempo da Lei nº 10.174,
de 2001:
63.1 "Há, nos casos analisados pelos Conselhos de Contribuintes, aplicação retroativa da Lei 10.174/2001?"
63.2 A resposta é negativa. Nos dois acórdãos que examinamos, relativos aos processos nºs 10855.003781/2001-86 e 10950.000964/2002-42, das Quarta e Primeira Câmaras do Primeiro Conselho de Contribuintes, respectivamente, o que ocorreu foi a aplicação imediata da alteração introduzida pela Lei nº 10.174/2001, ou seja, a Secretaria da Receita Federal, após a vigência dessa Lei, utilizou os dados de que dispunha em virtude da fiscalização do recolhimento da CPMF para dar início à atividade de fiscalização do recolhimento de outros tributos, intimando os contribuintes a esclarecerem as discrepâncias constatadas entre os rendimentos declarados e o montante global da movimentação bancária.
63.3 Irrelevante, no caso, que essas informações obtidas no âmbito da fiscalização do recolhimento da CPMF tenham sido fornecidas à SRF antes do início da vigência da Lei nº 10.174, de 2001, pois o que passou a ser possível, a partir da Lei nova, foi a utilização dessas informações, quer daquelas já encaminhadas à SRF em momento anterior, quer daquelas obtidas posteriormente ao início da vigência da nova Lei.
63.4 "Essa Lei (refere-se à Lei nº 10.174, de 2001) pode ser
aplicada retroativamente?"
63.5 Tecnicamente, correto é afirmar que
a Lei nº 10.174, de 2001, pode ser aplicada imediatamente, ou seja, pode
passar a regular imediatamente os efeitos que decorrem de uma obrigação
tributária nascida em momento anterior à data da sua vigência.
Trata-se de aplicação imediata, e não retroativa, porque
a aplicação desde logo da Lei nº 10.174, de 2001, não
atinge situação jurídica já consolidada no tempo,
segundo as normas vigentes no passado, mas situações jurídicas
que se prolongam no tempo, enquanto não se der o término do prazo
decadencial para constituir os créditos tributários pertinentes.
Assim, as situações a serem reguladas imediatamente pela Lei nº
10.174, de 2001, são situações pendentes que continuam
a ocorrer já sob a vigência da Lei nova. A possibilidade de aplicação
imediata da Lei nº 10.174, de 2001, funda-se no critério estabelecido
no art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, no
§ 1º do artigo 144 do CTN e na ausência de ofensa ao ato jurídico
perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada.
63.6 "Está correta a Quarta Câmara ao afirmar que a Lei nº 10.174/2001 teria criado nova hipótese de incidência do imposto de renda?"
63.7 Não. Conforme exposto nos itens 28
a 38 deste Parecer, trata-se de entendimento que não pode ser acolhido,
pois ele parte da premissa equivocada de que a hipótese de incidência
tributária abrange, dentre um de seus aspectos essenciais, "as diversas
formas de desvendamento da base imponível", posição
que não se coaduna com a melhor doutrina a respeito do tema. Além
disso, o entendimento adotado pela Quarta Câmara do Primeiro Conselho
de Contribuintes, no precedente examinado neste Parecer, considera que as informações
recebidas no âmbito da fiscalização da CPMF constituem causa
dos depósitos bancários que podem configurar o fato gerador do
imposto de renda por omissão de receita, premissa que se afigura igualmente
equivocada, pois essas informações apenas demonstram a possibilidade
de existência de ditas movimentações bancárias, mas
não constituem causa da sua ocorrência. Nesse particular, o precedente
mencionado realiza nítida confusão entre o evento demonstrativo
da possível existência do fato tributável e o fato tributável
em si mesmo.
III - A questão relativa à Lei Complementar nº 105/2001
64. A Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001, previu, no art. 5º, a possibilidade de que as instituições financeiras informem à administração tributária da União as operações financeiras efetuadas pelos usuários de seus serviços. O mesmo dispositivo atribuiu competência ao Poder Executivo para disciplinar a periodicidade, os limites de valor e os critérios a serem observados para a prestação dessas informações.
65. De acordo com o § 2º do art. 5º da mesma Lei, as informações que podem ser transferidas restringir-se-ão a informes relacionados com a identificação dos titulares das operações e os montantes globais mensalmente movimentados, vedada a inserção de qualquer elemento que permita identificar a sua origem ou a natureza dos gastos a partir deles efetuados. Além disso, o § 5º do mesmo dispositivo legal determinou que as informações assim recebidas pela administração tributária deverão ser conservadas sob sigilo fiscal, na forma da legislação em vigor.
66. Claro está que, tratando-se de transferência de informações que se restringem a demonstrar os montantes globais das movimentações bancárias efetuadas pelos contribuintes, sem identificar a origem ou natureza dos gastos efetuados, não há, no caso, qualquer risco de ofensa às garantias constitucionais do direito à incolumidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, inciso X, da Constituição Federal de 1988).
67. Nesse sentido, o Sr. Procurador-Geral Adjunto
da Fazenda Nacional Dr. Aldemário Araújo Castro, em artigo intitulado
"A constitucionalidade da transferência do sigilo bancário
para o fisco preconizada pela Lei Complementar nº 105/2001", disponível
em http://www.aldemario.adv.br/sigilo.htm, destaca, com propriedade, que:
"(...) É correto consignar, isto sim, que certas e determinadas
operações podem, em função de sua conformação,
revelar ou indicar aspectos do modo de vida de alguém. Entretanto, mesmo
estas operações somente viabilizam este conhecimento quando vistas
além do mero dado quantitativo. Neste círculo limitado, do dado
meramente contábil, não há espaço para invasão
da intimidade ou privacidade.
Um débito em conta corrente, a título de ilustração,
tanto pode ter sido realizado para viabilizar uma doação a um
moribundo quanto para remunerar o autor material de um crime. O dado numérico
em si nada revela em relação ao detentor da conta bancária.
Verificamos, portanto, a inafastável necessidade de confrontar cada tipo
de operação bancária ou financeira com os direitos à
intimidade e vida privada. Somente o aspecto qualitativo de cada uma delas,
até porque o dado numérico ou contábil em si não
revela costumes ou preferências pessoais, poderá ter relação
com os direitos inscritos na Constituição. A conclusão
irrecusável, a partir da análise proposta, aponta para:
(a) ausência de invasão da intimidade ou vida privada nas operações
isoladas, objetivas e impessoais;
(b) ausência de violação da intimidade ou vida privada nas
operações que envolvem terceiros quando conhecido tão-somente
o dado numérico ou contábil nela presente;
(c) possibilidade de ingresso em indicadores da intimidade e vida privada de
alguém nas operações que envolvem terceiros quando conhecido
o "lado" qualitativo nelas presentes.
Nesta linha de raciocínio, a regra do art. 5o da Lei Complementar no
105/2001 não pode ser inquinada de inconstitucional (12). Como as operações
bancárias são comunicadas ao Fisco em "...
montantes globais mensalmente movimentados, vedada a inserção
de qualquer elemento que permita identificar a sua origem ou a natureza dos
gastos a partir deles efetuados", conforme cláusula explícita
naquele comando legal, não subsiste a menor possibilidade de invasão
da intimidade ou vida privada das pessoas com o conhecimento tãosomente
de valores, de dados numéricos, frias quantidades."
68. Note-se que os dados globais relativos à movimentação mensal do contribuinte, cuja prestação à administração tributária é assegurada pela Lei Complementar nº 105, de 2001, também podem ser obtidos no âmbito da fiscalização da CPMF, e que a legislação que disciplina a referida contribuição também não determina que os dados fornecidos contenham a especificação de cada movimentação bancária individualizada.
69. Nesse passo, os dois casos concretos julgados pelo Primeiro Conselho de Contribuintes, examinados nesta oportunidade, revelam que, para poder realizar o lançamento dos tributos distintos da CPMF, a administração tributária necessitou complementar as informações acerca das movimentações globais dos contribuintes, razão pela qual, com espeque na mesma Lei Complementar nº 105, de 2001, obteve cópias dos extratos bancários das contas vinculadas aos contribuintes autuados.
70. Ora, o § 4º do art. 5º da Lei Complementar nº 105, de 2001, dispõe que, se a administração tributária, ao examinar as informações sobre a movimentação bancária global do contribuinte, constatar indícios de falhas, incorreções e omissões, ou ainda indícios de cometimento de ilícito fiscal, poderá requisitar "as informações e os documentos de que necessitar, bem como realizar fiscalização ou auditoria para a adequada apuração dos fatos". Eis aqui o fundamento legal que ampara a possibilidade de que a administração tributária requeira diretamente às instituições financeiras o fornecimento dos extratos bancários de contas vinculadas aos contribuintes, ou os obtenha em ato de fiscalização. Desde que presentes os indícios exigidos no dispositivo legal em comento, tal medida poderá ser implementada.
71. A reforçar esse dispositivo, o art. 6º da Lei Complementar nº 105, de 2001, permite que as autoridades e os agentes fiscais tributários examinem documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, se houver processo administrativo fiscal instaurado ou procedimento fiscal em curso, e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.
72. Ressalte-se que embora o § 4º do art. 5º e o art. 6º, ambos da Lei Complementar nº 105, de 2001, admitam o acesso da administração tributária a informações mais detalhadas acerca da vida financeira dos contribuintes, aqui não se trata, ainda, de quebra de sigilo bancário, mas de mera transferência de dados protegidos pelo sigilo bancário às autoridades obrigadas a mantê-los protegidos no âmbito do sigilo fiscal. Realmente, as informações obtidas por força da aplicação do § 4º do art. 5º e do art. 6º, ambos da Lei Complementar nº 105, de 2001, devem ser conservadas sob sigilo fiscal, na forma da legislação em vigor (art. 198 do CTN), conforme dispõe o § 5º do art. 5º e o parágrafo único do art. 6º da Lei Complementar nº 105, de 2001. Assim, como não há divulgação a terceiros sobre essas informações, não se pode entender que o seu fornecimento à administração tributária configure violação do dever de sigilo, como bem explicita o inciso VI do § 3º do art. 1º da Lei Complementar nº 105, de 2001.
73. É verdade que o assunto é polêmico, e que existe entendimento sustentando a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei Complementar nº 105, de 2001, ora examinados. Além do fundamento relativo à pretensa violação aos direitos constitucionais à intimidade e à vida privada, já afastado nas linhas anteriores, argumenta- se que a Constituição Federal exigiria prévia autorização judicial para que a administração tributária pudesse ter acesso a essas informações.
74. Contudo, valemo-nos, mais uma vez da precisão
com que o Procurador-Geral Adjunto da Fazenda Nacional Dr. Aldemário
Araújo Castro analisou o tema, transcrevendo mais um trecho do artigo
de sua autoria acima mencionado:
"Neste ponto é preciso tratar da chamada reserva constitucional
de jurisdição. Este seria um postulado no sentido da submissão
de determinadas decisões ao âmbito exclusivo de ação
dos magistrados. Vários juristas inserem o conhecimento de informações
bancárias ou financeiras na referida reserva constitucional. Tal inserção,
no entanto, não se sustenta, sequer resistindo ao crivo da análise
a partir do próprio texto constitucional e do sistema jurídico
por ele inaugurado.
Com efeito, a ordem jurídica pátria estabelece que o Poder Judiciário
será competente para apreciar ameaças e lesões a direitos.
Assim, em regra, o juiz será chamado para apreciar atos já praticados
(mesmo no caso de ameaça, atos indicadores de uma provável lesão
de direitos). Não subsiste como atividade normal do magistrado autorizar
a prática de atos. Entretanto, para algumas matérias o constituinte
entendeu necessária a autorização judicial, dada a relevância
dos bens jurídicos envolvidos. Assim, identificamos a necessidade de
prévia manifestação judicial para: busca domiciliar (art.
5o, inciso XI), interceptação de comunicações telefônicas
(art. 5o, inciso XII) e prisão, fora do flagrante (art. 5o, inciso LXI).
Nestes casos, a Constituição expressamente exige a intervenção
judicial preliminar. Este aspecto, devemos sublinhar, é fundamental.
A reserva constitucional de jurisdição reclama explícita
menção, na medida em que foge aos parâmetros normais da
atuação judicial (14). Em assim sendo, não definiu o constituinte
a necessidade de autorização judicial, e somente judicial, para
acesso às informações bancárias e financeiras do
contribuinte.
Ao contrário, a Constituição foi explícita em viabilizar
o acesso do Fisco ao patrimônio, aos rendimentos e às atividades
econômicas do contribuinte (art. 145, §1o).
A cláusula final do art. 145, §1o da Constituição
não reforça a inacessibilidade aos dados bancários ou financeiros,
como querem alguns. As expressões "... respeitados os direitos individuais
e nos termos da lei, ..." procuram resguardar o contribuinte em dois sentidos:
(a) para as informações relacionadas com sua vida privada, em
relação à não divulgação ou conhecimento
amplo das mesmas e (b) na fixação de regras de organização
e procedimento das ações fiscais quando voltadas para identificação
de manifestações econômicas tributáveis.
Mas as vozes irresignadas insistem em que o Fisco não pode conhecer estas
informações. Afirmam, reafirmam, teimam que o acesso às
informações financeiras pela Administração Tributária
seria o mais claro e nítido caso de "quebra" do sigilo bancário.
Vamos admitir esta premissa como verdade, embora não o seja, para efeito
de argumentação. Mesmo assim o Fisco teria o poder, e o dever,
de pesquisar a vida financeira dos contribuintes. Tal possibilidade está
consagrada, como destacamos, explicitamente no art. 145, §1o da Constituição.
O dispositivo em foco autoriza a conclusão de que a presença do
interesse público relativiza as restrições ao acesso aos
fatos de natureza ou conteúdo financeiro reveladores da intimidade ou
vida privada.
Se de um lado temos a necessidade de sigilo daquelas informações
bancárias reveladoras de intimidade e vida privada, de outro lado temos
a necessidade de fiscalização, de apuração da ocorrência
de fatos geradores tributários anunciados na própria Constituição.
Ademais, somente o amplo e total conhecimento da vida econômica dos contribuintes,
hoje majoritariamente financeira, dadas as características da economia
moderna, permitirá a efetividade, aqui o discurso é constitucional,
de ditames, também constitucionais, como a pessoalidade dos impostos,
a capacidade contributiva, a isonomia e livre iniciativa, mediante combate à
concorrência desleal daquele que não recolhe a carga tributária
devida. Afirme-se, ainda, como absolutamente incompatível com a idéia
de Estado Democrático de Direito a possibilidade de tornar inacessíveis
atividades econômicas tributáveis, cujos recursos arrecadados via
tributação constituem a principal, quiçá, única
forma de realização da justiça social.
Assim, diante de um confronto de interesses, bens ou valores constitucionais
é preciso realizar o chamado sopesamento ou avaliação ponderada
dos fins, conforme construção da doutrina constitucional alemã.
Ao buscar a convivência de vetores constitucionais em sentidos contrários,
o jurista terá de afastar ou diminuir a força de um deles, sem
aniquilá-lo, para viabilizar a realização do outro (15).
O exemplo mais eloqüente deste expediente na prática constitucional
brasileira foi efetivado pelo Supremo Tribunal Federal na Ação
Direta de Inconstitucionalidade no 1.790-DF (16). Neste precedente, importantíssimo
para os rumos do debate acerca da extensão do sigilo bancário,
o Excelso Pretório firmou a premissa de que é juridicamente possível
a convivência da privacidade com os "arquivos de consumo" amplamente
utilizados no mercado. Portanto, diante desta decisão do Supremo, subsiste,
sem resposta, a seguinte pergunta: por que a formação e utilização
dos chamados "arquivos de consumo" pode conviver com os direitos à
intimidade e vida privada e a transferência criteriosa e sigilosa de informações
financeiras para o Fisco não pode? (...)".
75. Como se vê, existem argumentos de relevante teor acerca da desnecessidade de prévia autorização judicial para que a administração tributária tenha acesso a informações mais detalhadas sobre a vida financeira dos contribuintes, pautados, inclusive, em precedente do Supremo Tribunal Federal. É evidente que esse acesso deve observar o devido processo legal, nos termos da parte final do § 1º do art. 145 da Constituição Federal. Mas não se pode considerá-lo, em si mesmo, incompatível com sistema constitucional em vigor.
76. Embora a matéria possa continuar suscitando
entendimentos divergentes no âmbito do Poder Judiciário, até
que venha a ser definitivamente julgada pelo Supremo Tribunal Federal, é
de se registrar que, atualmente, os Conselhos de Contribuintes vinculados ao
Ministério da Fazenda não estão autorizados, em seus julgamentos,
a afastar a aplicabilidade da Lei Complementar nº 105, de 2001, com fundamento
na sua inconstitucionalidade. É que, por força do art. 22A do
Regimento Interno dos Conselhos de Contribuintes, dispositivo que foi incluído
por meio da Portaria MF nº 103, de 23 de abril de 2002, não se pode
afastar a aplicação de norma vigente em virtude de sua inconstitucionalidade.
Citado artigo é do seguinte teor:
"Art. 22A. No julgamento de recurso voluntário, de ofício
ou especial, fica vedado aos Conselhos de Contribuintes afastar a aplicação,
em virtude de inconstitucionalidade, de tratado, acordo internacional, lei ou
ato em vigor.
Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica
aos casos de tratado, acordo internacional, lei ou ato normativo:
I - que já tenha sido declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal
Federal, em ação direta, após a publicação
da decisão, ou pela via incidental, após a publicação
da Resolução do Senado Federal que suspender a execução
do ato;
II- objeto de decisão proferida em caso concreto cuja extensão
dos efeitos jurídicos tenha sido autorizada pelo Presidente da República;
III - que embasem a exigência de crédito tributário:
a) cuja constituição tenha sido dispensada por ato do Secretário
da Receita Federal; ou b) objeto de determinação, pelo Procurador-Geral
da Fazenda Nacional, de desistência de ação de execução
fiscal."
77. Considerando que, na matéria em exame, as exceções elencadas no parágrafo único do art. 22A acima transcrito não estão configuradas, tem-se, como conseqüência, a impossibilidade de que a aplicação de dispositivos da Lei Complementar nº 105, de 2001, seja afastada pelos Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda com fundamento na sua inconstitucionalidade. Evidentemente, não está vedada a apreciação, pelos Conselhos de Contribuintes, da observância do devido processo legal por parte da administração tributária em cada caso concreto, pois a limitação imposta a esses Órgãos de Julgamento, no particular, diz respeito apenas ao controle de constitucionalidade de atos normativos em vigor.
78. Finalmente, é de se registrar que a aplicação no tempo da Lei Complementar nº 105, de 2001, no que concerne ao acesso direto da administração tributária às informações bancárias dos contribuintes, há de observar a mesma solução preconizada para a Lei nº 10.174, de 2001, no presente Parecer. Com efeito, a se admitir que o art. 38 da Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964, já permitia esse acesso direto da administração tributária às referidas informações, sem necessidade de prévia autorização judicial, sequer existirá conflito de leis no tempo, pois nesse caso a Lei Complementar nº 105, de 2001, não terá trazido nenhuma inovação no mundo jurídico. Terá apenas reafirmado a disciplina legal pré-existente. De outro lado, mesmo que se entenda que o art. 38 da Lei nº 4.595, de 1964, exigia prévia autorização judicial, e que a Lei Complementar nº 105, de 2001, inovou na disciplina da matéria, não haverá nenhum óbice à aplicação imediata dos dispositivos em exame, pois eles também disciplinam aspectos procedimentais da atividade de lançamento, efeitos decorrentes da obrigação tributária não adimplida voluntariamente que se prolongam no tempo, e que, por isso, podem ser atingidos pela lei nova.
79. Posto isso, é possível afirmar, em resposta à pergunta formulada pela representação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional junto aos Conselhos de Contribuintes, no que se refere ao tema da Lei Complementar nº 105, de 2001, que essa Lei, ao autorizar ao Fisco a análise da movimentação bancária dos contribuintes, não é inconstitucional, pois não se vislumbra, no caso, ofensa à intimidade e à vida privada dos contribuintes, quer em virtude de algumas dessas informações não revelarem aspectos qualitativos da movimentação bancária realizada, quer em razão de essas informações serem mantidas sob o manto protetor do sigilo fiscal. Além disso, também não há inconstitucionalidade por ofensa à pretensa reserva constitucional de jurisdição, pois a Constituição Federal de 1988 não contém exigência expressa nesse sentido.
80. Acrescentem-se, à resposta acima formulada,
as considerações realizadas nos itens 76 a 78 deste Parecer.
IV - Conclusão
81. Ante o exposto, conclui-se:
81.1) alteração introduzida na parte final do § 3º do art. 11 da Lei nº 9.311, de 1996, por força da Lei nº 10.174, de 2001, deve ter aplicação imediata, de modo que a Secretaria da Receita Federal está autorizada a utilizar as informações obtidas no âmbito da fiscalização da CPMF, já disponíveis ou obtidas após o advento da nova Lei, para, após o início da vigência da Lei nº 10.174, de 2001, instaurar procedimento administrativo com o objetivo de verificar a ocorrência do fato gerador de obrigação tributária relativa a tributo distinto da CPMF e de realizar o lançamento respectivo, ainda que se trate de obrigação cujo fato gerador tenha ocorrido antes da vigência da Lei nº 10.174, de 2001;
81.2) não se trata, no caso, de aplicação retroativa da Lei nº 10.174, de 2001, mas da sua aplicação imediata, com espeque no princípio tempus regit actum, no art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, e no § 1º do artigo 144 do Código Tributário Nacional, pois não ocorre, no caso, ofensa potencial a ato jurídico perfeito, a direito adquirido ou a coisa julgada, devendo-se, apenas nesta última hipótese, realizar o exame caso a caso;
81.3) não está correto o entendimento adotado pela Quarta Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes, de que a Lei nº 10.174, de 2001, criou nova hipótese de incidência do imposto de renda;
8.4) o § 2º do art. 144 do Código Tributário Nacional não constitui exceção à regra do § 1º do mesmo dispositivo, não sendo relevante para o deslinde da questão relativa à aplicação no tempo da alteração introduzida pela Lei nº 10.174, de 2001;
8.5) os dispositivos da Lei Complementar nº 105, de 2001, que autorizam o acesso da administração tributária a informações bancárias mais detalhadas acerca da vida financeira dos contribuintes não são inconstitucionais;
8.6) os Conselhos de Contribuintes não estão autorizados, atualmente, a afastar a aplicabilidade desses dispositivos com fundamento na sua inconstitucionalidade, mas compete-lhes apreciar se o acesso às informações em questão foi realizada com a observância do devido processo legal;
8.7) a aplicação no tempo dos dispositivos da Lei Complementar nº 105, de 2001, ou não oferece conflitos de direito intertemporal, ou, se admitido o conflito, há de ser regulada mediante a regra da aplicação imediata, adotando-se a mesma solução proposta para a Lei nº 10.174, de 2001, por se tratar de disciplina jurídica de aspectos processuais da atividade de lançamento.
À consideração superior.
Coordenação-Geral de Assuntos Tributários, em 14 de agosto de 2003.
Priscila Faria da Silva
Procuradora da Fazenda Nacional De acordo.
À consideração do Senhor Procurador-Geral Adjunto da Fazenda Nacional.
Coordenação-Geral de Assuntos Tributários, em 20 de agosto de 2003.
CLÁUDIA REGINA GUSMÃO Coordenadora-Geral
de Assuntos Tributários Substituta Aprovo. Encaminhe-se cópia
do presente
Parecer à representação da Procuradoria-Geral da Fazenda
Nacional junto aos Conselhos de Contribuintes. Em seguida, devolva-se o presente
expediente à Secretaria da Receita Federal, acompanhado da versão
original deste Parecer.
Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, em 23 de setembro de 2003.
Francisco Tadeu Barbosa de Alencar
Procurador-Geral Adjunto da Fazenda Nacional