TRANSPORTE COLETIVO I

 

APELAÇÃO CÍVEL N. 620.743-8 DA COMARCA DE PONTA GROSSA, 2.ª VARA CÍVEL

APELANTE: VIAÇÃO CAMPOS GERAIS S.A.

APELADA: LAUDELINA MORAIS DOS SANTOS

RELATOR: JUIZ CONVOCADO ALBINO JACOMEL GUÉRIOS (
EM SUBSTITUIÇÃO AO DESEMBARGADOR LUIZ LOPES)


ACIDENTE OCORRIDO NO TRAJETO DE TRANSPORTE DE PASSAGEIRO. INCAPACIDADE PARA O TRABALHO COMPROVADA. DANO MORAL. INDENIZAÇÃO. SENTENÇA PENAL ABSOLUTÓRIA POR FALTAS DE PROVAS SOBRE A CULPA DO PREPOSTO DA RÉ. IRRELEVÂNCIA. INDENIZAÇÃO DO DANO MORAL. REDUÇÃO. APELAÇÃO PROVIDA EM PARTE


1. A empresa de transporte coletivo responde objetivamente pelos danos causados pela queda de passageiro no interior do ônibus, salvo prova de culpa exclusiva da vítima, quer por ser ela uma concessionária de serviço público, quer por ser fornecedora, quer, por fim, em razão da obrigação de incolumidade própria ao contrato de transporte.
2. Para a configuração da incapacidade para o trabalho basta que a vítima não possa mais desempenhar com dignidade qualquer atividade remunerada. Contrariaria o princípio da dignidade da pessoa humana, um princípio constitucional e um valor fundante do ordenamento jurídico, a assertiva de que uma pessoa continua capaz para o trabalho embora não possa desenvolver atos corriqueiros do seu dia a dia funcional sem sentir fortes dores.
3. A compensação do dano moral deve também desempenhar as funções dissuasória e punitiva, devendo o Juiz arbitrar a respectiva indenização tomando em conta critérios como o grau de culpa, a intensidade do sofrimento experimentado pela vítima, a capacidade econômica do ofensor, a possibilidade de atos semelhantes ocorrerem etc.
Apelação provida em parte.




Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 620.743-8, da Comarca de Ponta Grossa, 2.ª Vara Cível, em que é apelante Viação Campos Gerais S.A. e apelada Laudelina Morais dos Santos.

Acordam os dois Desembargadores e o Juiz Relator Convocado da Décima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em prover em parte a apelação, nos termos deste julgamento.


§ 1. Laudelina Morais dos Santos pretende haver de Viação Campos Gerais S.A. indenização por danos materiais e moral dizendo, em resumo, que quando era transportada em um ônibus de propriedade da ré sofreu uma queda no momento em que o veículo passou por uma lombada, causando um forte impacto. Sustenta que era diarista e em razão da queda permanece incapacitada para o trabalho. Sustenta que sofreu dano moral.

Contestou a ré negando a culpa do seu preposto no acidente e negando ainda o transporte da autora em um dos seus ônibus. Sustenta não caracterizada a incapacidade e que a demanda improcede.

Após instrução probatória, acolheu o MM. Juiz a demanda para condenar a ré ao pensionamento vitalício de um salário mínimo ao mês e à indenização do dano moral, em valor fixado em R$ 100.000,00 (cem mil reais).

Recorre a autora sustentando a absolvição do seu preposto na esfera criminal e negando a sua culpa e a incapacidade da autora ao fundamento de que a perícia constatara apenas um quadro de dor. Sustenta que a autora não teria provado o exercício de atividade remunerada e que a indenização do dano moral é excessiva.

O recurso foi contra-arrazoado.

É o relatório.

§ 2. Controverte-se sobre a responsabilidade de empresa de transporte coletivo pelos danos ocasionados a passageiro que, em razão de manobra do condutor do ônibus, sofre uma queda no interior do veículo.
Ao lado dessa questão, principal, discutem as partes, ainda:

1) o valor da indenização do dano moral;

2) a influência da absolvição do motorista do ônibus no processo criminal;

3) o pensionamento vitalício à autora;

4) a obrigação da ré de custear futuros tratamentos médicos à autora.

2.1. Sentença penal absolutória

De fato, o motorista do ônibus foi absolvido no processo criminal por falta de provas (art. 386, VI, CPP) (fls.
253 a 255). Todavia, a circunstância é irrelevante por duas razões, ao menos:

a) O artigo 935 do Código Civil estabelece que a responsabilidade civil independe da responsabilidade criminal, produzindo a absolvição, no entanto, coisa julgada no cível quando o juiz criminal absolver o agente concluindo pela inexistência do crime ou da autoria; aí sim, e somente nessas duas hipóteses, não poderá ocorrer a condenação no cível, pela impossibilidade de se reconhecer no processo civil algo categoricamente negado no processo criminal ("O fato não pode existir no Cível e inexistir no Crime; o réu não pode ser considerado o seu autor no Cível se a Justiça Criminal já declarou que ele não foi o autor"1). A absolvição por falta de provas, diante do que dispõe o citado artigo do Código Civil: "quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal", em uma redação que pressupõe o reconhecimento efetivo da ausência do fato delitivo ou da autoria, não impede o ajuizamento da demanda cível ou o prosseguimento do processo cível, produzindo quando muito a absolvição uma presunção de inocência.2

2) De qualquer modo, como será visto mais adiante, a culpa do motorista é indiferente; o que importa é o nexo de causa e efeito e o dano, isto é: a prova de que a queda deu-se no interior do coletivo e que desse fato resultaram tais e quais danos, patrimoniais e moral, isso porque a responsabilidade da ré é objetiva, não dependendo, pois, da culpa dos seus prepostos.

2.2. Responsabilidade civil das concessionárias de transporte coletivo

A responsabilidade é objetiva, conforme antes assinalado, e tem esse caráter pelas seguintes razões:

a) Primeiro porque, no transporte coletivo, a empresa transportadora atua como concessionária de um serviço público, e a Constituição Federal estende às concessionárias e permissionárias o mesmo regime que regula a responsabilidade civil da Administração (artigo 37, parágrafo 6º, da CF).

Nesse sentido:

O concessionária -- já foi visto -- gere o serviço por sua conta, risco e perigos. Daí que incumbe a ele responder perante terceiros pelas obrigações contraídas ou por danos causados. Sua responsabilidade pelos prejuízos causados a terceiros e ligados à prestação do serviço governa-se pelos mesmos critérios e princípios retores da responsabilidade do Estado, pois ambas estão consideradas conjuntamente no mesmo dispositivo constitucional, o art. 37, parágrafo 6º, cujos termos são os seguintes...3

A CMTC, como empresa concessionária de serviço público, responde objetivamente pelos danos que seus agentes venham, nessa qualidade, causar a terceiros, conforme disposto no art. 37, parágrafo 6º, da CF...4

Dano sofrido por passageiro de ônibus, atingido, no curso da viagem, por projetil de arma de fogo, disparado por assaltante, em seu interior, e que o deixou paraplégico. Inexistência, na espécie, de força maior, tendo em vista que hoje é fato previsível o roubo no interior dos veículos coletivos, cabendo à transportadora adotar as medidas necessárias à proteção dos passageiros. Aplica-se, na espécie, a teoria do risco administrativo, ex vi do art. 37, º 6.o, da Constituição da República, impondo-se o dever de indenizar, não demonstrada a culpa exclusiva da vítima. Desprovimento do recurso.5

b) Segundo, porque o contrato de transporte é de consumo, não existindo dificuldade na "caracterização do profissional como fornecedor..., nem a do usuário do serviço, seja qual for o fim que pretende com o deslocamento, como consumidor"6; e como contrato de consumo, havendo fato do serviço, ou um serviço inadequadamente prestado e que venha a causar danos ao consumidor, regula-o o artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, artigo que enumera como excludentes a culpa da vítima, exatamente a questão tratada pela ré na sua contestação e nas razões de recurso.

c) Porque, finalmente, o transportador tem o dever de segurança, de incolumidade, de levar o passageiro até o seu destino sem acidentes, ou sem riscos à sua integridade física ou mesmo psíquica (art. 734, CC).

Nesse sentido:

Pode-se considerar, pois, que o transportador assume uma obrigação de resultado: transportar o passageiro são e salvo, e a mercadoria sem avarias, ao seu destino. A não obtenção desse resultado importa o inadimplemento das obrigações assumidas e a responsabilidade pelo dano ocasionado. Não se eximirá da responsabilidade provando apenas ausência de culpa. Incumbe-lhe o ônus de demonstrar que o evento danoso se verificou por caso fortuito, força maior ou por culpa exclusiva da vítima.7


A transportadora, para eximir-se da responsabilidade em caso de acidente com passageiro, deve demonstrar caso fortuito ou culpa exclusiva da vítima.8

Enfim, embora objetiva, a responsabilidade da Administração e a do fornecedor são excluídas pelo fato de terceiro ou pela culpa exclusiva da vítima (artigo 14, § 3º, do Código de Defesa do Consumidor), conforme também previsto nos artigos 734, 735 e 738, parágrafo único, do Código Civil, que definem como excludentes da responsabilidade do transportador apenas o caso fortuito ou força maior e a culpa exclusiva do transportado (a culpa concorrente pela transgressão a normas regulamentares permite a redução eqüitativa da indenização), lembrando-se, bem ainda, a ressalva que se faz para a caracterização da culpa da vítima como excludente da responsabilidade:

Não defendemos a teoria da causa eficiente, como pareceu a Martinho Garcez Neto (Prática da responsabilidade civil, p. 48), mas exatamente, a doutrina apoiada pelo eminente autor. Falamos em oportunidade melhor e mais eficiente de evitar o dano e não
em causa. Consideramos em culpa quem teve não a last chance, mas a melhor oportunidade e não a utilizou. Isso é exatamente uma consgração da causalidade adequada, porque se alguém tem a melhor oportunidade de evitar o evento e não a aproveita, torna o fato do outro protagonista irrelevante para a sua produção. Estamos de pleno acordo com a lição de Wilson Melo da Silva.

O que se deve indagar é, pois, qual dos fatos, ou culpas, foi decisivo para o evento danoso, isto é, qual dos atos imprudentes fez com que o outro, que não teria conseqüências, de si só, determinasse, completado por ele, o acidente. Pensamos que sempre que seja possível estabelecer inocuidade de um ato, ainda que imprudente, se não tivesse intervindo outro ato imprudente, não se deve falar em concorrência de culpa. Noutras palavras: a culpa grave necessária e suficiente para o dano exclui a concorrência de culpa, isto é, a culpa sem a qual o dano não se teria produzido.9

A primeira questão a apreciar é a da eficiência do concurso de ambas as partes no evento danoso, pois, provando-se que este ocorreria independentemente da culpa de uma das partes, faltará a relação de causalidade entre o prejuízo e aquele concurso. Por exemplo, julgou-se na Itália que o fato de um automóvel seguir fora da mão, embora culposo, não pode ser havido como causa eficiente do prejuízo do peão que, improvisada e distraidamente, se foi colocar na direção do veículo, quando este se encontrava já pertíssimo, sem poder ser travado, nem desviado para a direita. De igual modo, no caso de choque de dois automóveis, devido à culpa do próprio lesado, será inútil provar que o dono do outro carro não tocou a sua buzina, quando se demonstra que a colisão seria inevitável, por muito que o outro buzinasse10

Na concorrência de situações culposas, se uma delas é inócua diante do desfecho danoso, prevalece a responsabilidade exclusiva daquele que gerou a conduta necessária e suficiente para causar o evento lesivo.11

2.3. Responsabilidade da ré

A autora sofreu uma queda no interior de em um ônibus de propriedade da ré quando o veículo passou por sobre uma lombada, fatos que esta, diante da prova produzida, não mais discute no recurso. Ainda, do tombo sofrido pela passageira resultaram-lhe as lesões descritas no laudo pericial: "fratura tipo explosão no corpo vertebral de T11 e T12", causa da sua incapacidade para o trabalho (fls. 197 e 198). O acidente e os danos, de per se, salvo culpa exclusiva da autora, determinam a responsabilidade da ré, por ser a responsabilidade civil desta objetiva, conforme mencionado.

Mas resta a questão da culpa da vítima, discutida também nas razões de recurso.

Insinua-se que a autora encontrava-se em pé e que não teria havido um solavanco anormal capaz de produzir a queda dos passageiros.

Primeiro, as duas testemunhas arroladas pela ré e muito menos o informante motorista do ônibus nada disseram sobre a queda em si da autora. Dilermaqndo Levadoski Gomes disse não ter assistido ao tombo (fl. 240), enquanto que Alexandro Sirajá José de Paula afirmou que viu a autora já caída no chão, nada dizendo se ela estaria ou não em pé (fl. 252). Agora, a testemunha Adolfo Domingues de Souza foi claro ao asseverar que a autora estava sentada em um dos bancos da parte traseira do veículo, "onde o impacto foi maior" (fl. 238), além de dizer, a mesma testemunha, que a passagem sobre a lombada fez com que alguns dos passageiros balançassem (fl. 238).

A referência por apenas uma das testemunhas à posição da autora no momento do balanço do ônibus -- sentada -- basta para afastar o argumento de eventual culpa da vítima, culpa que consistiria, segundo os argumentos da apelante, talvez no fato de o passageiro optar por permanecer em pé durante o trajeto. De qualquer modo, ainda que a autora estivesse em pé, pergunta-se: isso seria suficiente para caracterizar a sua culpa exclusiva? Para haver culpa é necessário o descumprimento de um dever preexistente, imposto pela lei (especificamente ou genericamente pela cláusula aberta de responsabilidade do artigo 186 do Código Civil) ou pelo contrato, e na previsibilidade das conseqüências do descumprimento desse dever. A previsibilidade, ainda, deve ser aferida em concreto, não em abstrato, porque, do contrário, como de regra se pode dizer que tudo ou quase tudo é previsível -- um assalto, um atropelamento, a queda de um fio elétrico --, sendo tudo previsível, não mais se poderia falar em culpa ou em excludente da responsabilidade. E daí se dizer que é o comportamento do homem médio atuando nas mesmas circunstâncias do agente que serve de parâmetro para a definição da culpa no caso concreto, ou, como se diz na doutrina:

Culpa é um êrro de conduta, moralmente imputável ao agente e que não seria cometido por uma pessoa avisada, em iguais circunstâncias de fato12.

Em princípio e in abstracto, o passageiro deve tomar alguns cuidados durante o transporte. É até lícito dizer que, dispondo de bancos vazios, deve sentar-se ou agarrar-se nos apoios existentes no veículo. Mas isso não quer dizer que a não-adoção dessas cautelas implique necessariamente, e sempre, um comportamento negligente ou imprudente. São as circunstâncias do caso concreto que poderão definir a culpa do passageiro. Por exemplo, não sendo in concreto previsível solavancos ou freadas bruscas, não haverá descumprimento culposo do dever. Faltará aqui a previsibilidade, examinada em concreto e objetivamente. Logo, a partir desses pontos de vista, mesmo que a autora estivesse em pé no momento do impacto das rodas com a lombada, seriam necessárias outras averiguações, como a possibilidade de ela poder prever que naquele exato momento ocorreria algo anormal, ou seja, a passagem sobre a lombada de forma a provocar o solavanco, e um solavanco suficientemente forte, e anormal, para causar a queda. A respeito desse ponto: a queda da autora do banco traseiro é em si mesmo significativa e aponta, in re ipsa, para a intensidade do baque. De fato: o arremesso de um passageiro do banco indica a intensidade do impacto, por não ser normal que isso ocorra pelo simples impacto das rodas do ônibus em um buraco ou em uma lombada, a desmerecer isso o depoimento das duas testemunhas da ré que disseram que o impacto fora normal (além do mais, a normalidade de um acontecimento tem muito de subjetivo; para certas pessoas, mais fortes, ou acostumadas ao balanço sempre abrupto do ônibus, um solavanco poderá passar despercebido, mas sem que isso importe, objetivamente, em uma situação de normalidade; essa situação haverá de ser apreciada objetivamente, a partir, por exemplo, dos danos ocasionados ao veículo, ou ao obstáculo, ou mesmo aos passageiros).

No caso dos autos, portanto, não se pode falar em culpa da autora, mais ainda porque, sendo um fato extintivo, era todo da ré o ônus da prova dessa excludente, de modo que esta responde pelos danos causados àquela.

2.4. Danos

O perito constatou a incapacidade da autora para as atividades que ela desenvolvia antes do acidente -- empregada doméstica --, incapacidade proveniente das dores que pequenos movimentos, como agachamento, flexão do tronco etc. (fls. 198 e 199), causam-lhe, dores que, ao lado do fator idade, impedem-na de continuar exercendo o trabalho que então lhe proporcionava sustento.

Por essa razão, deve prevalecer a condenação da ré ao pensionamento estabelecido na r. sentença, não convencendo os contra-argumentos de que a incapacidade talvez adviesse de uma predisposição da autora e de que a dor não é causa de invalidez, e não convencem porque:

a) Nada nos autos indica a preexistência de alguma moléstia degenerativa que predispusesse a autora à incapacidade reconhecida pelo perito, e mesmo que existisse uma possível concausa ela não afastaria a responsabilidade da ré, porque, mesmo nessa hipótese, as lesões nas vértebras da vítima continuariam como causa desencadeadora de um eventual agravamento do seu estado de saúde, sendo que, de acordo com a doutrina, as concausas preexistentes são totalmente irrelevantes para o rompimento do nexo de causa e efeito.13
b) O perito, por outro lado, foi claro ao dizer que as dores incapacitam a autora para o trabalho, na medida em que a impedem de realizar movimentos simples e próprios da sua atividade profissional. O contra-argumento empregado pela ré é desumano. Não se pode exigir de alguém tenha de suportar dores para continuar trabalhando. A dor incapacita, sim. Para varrer ou para lavar roupas, atos comuns do seu cotidiano de empregada doméstica, a autora terá que, bravamente, suportar dores na coluna e nos membros. Mas até quando ela poderá agüentar um sofrimento assim, ou até que ponto um ser humano deve submeter-se sem perder a dignidade experimentar todos os dias a um quadro de dor? Certamente chegará o dia que o seu corpo e o seu espírito fraquejarão e ela desistirá, a menos que se trata de um ser humano dotada de força descomunal, de um corpo insensível à dor. Também, não parece coerente com o princípio da dignidade humana impor a alguém um sofrimento físico, ou seja, forçá-lo a continuar trabalhando a despeito das dores que ele venha a experimentar. Não se compadece uma situação assim com a proteção que a Constituição Federal procura dispensar à pessoa humana. O que importa, enfim, é que a autora antes do acidente estava em condições de trabalhar normalmente e que em razão de um ato do preposto da ré ela tornou-se inapta para a mesma atividade, ou o desempenho da mesma atividade dela exigirá esforço que a ordem jurídica não impõe por considerações à dignidade da pessoa humana.

Também ao contrário do que sustenta a ré, a prova testemunhal demonstra que a autora, a despeito da sua idade, mais de setenta anos, trabalhava como doméstica na casa da senhora Mardeli (fls. 236 e 237).

Portanto, a r. sentença deve ser mantida nesse ponto.

Resta a questão do dano moral, dano que efetivamente ocorreu, na medida em que houve ofensa à integridade física da autora, ou seja, a um direito fundamental.

O valor da indenização do dano moral, no entanto, deve ser alterado, como será visto.

Admitida a compensação do dano moral, e sendo este constituído pela lesão a interesses não-patrimoniais, os critérios mais adequados para a definição da indenização deveriam prender-se exclusivamente à gravidade do dano, à sua extensão, sem se pensar em uma função punitiva ou preventiva14, como, aliás, estabelece o artigo 944, parágrafo único, do novo Código Civil. Entretanto, o uso das duas funções, ressarcitória e punitiva, ao lado do efeito dissuasivo, é aceito na doutrina, majoritariamente, e nos tribunais quase que unanimemente, e afina-se a um senso ético-moral mínimo que quer que o ilícito seja de algum modo punido. "O professor Carlos Alberto Bittar encontrou o ponto de equilíbrio ao fazer a simbiose entre o caráter punitivo do ressarcimento do dano moral e o caráter ressarcitório. A conjunção de ambos os critérios é apontado em diversos julgados dos Tribunais do País. A gravidade da lesão, a magnitude do dano e as circunstâncias do caso, além do efeito dissuasório da indenização devem ser observados, de forma conjugada e com bastante rigor na fixação do montante indenizatório"15. E reconhecida a necessidade da indenização cumprir aqueles papéis, os critérios mais razoáveis e apropriados à sua fixação devem ser: (i) os inerentes à lesão em si, ou seja, aqueles que retratam a extensão desta (como a essencialidade do bem atingido, o sofrimento causado à vítima quando isso ocorrer); (ii) os relacionados ao comportamento do ofensor, ao lado de dados econômico-financeiro e sociais, muito embora esses dados não devam relacionar-se à vítima, por não se coadunarem "com a noção de dignidade, extrapatrimonial, na sua essência, quaisquer fatores patrimoniais para o juízo de reparação"16. O efeito dissuasório deve ser empregado quando a atividade danosa do ofensor puder repetir-se, quando a situação de fato indicar a necessidade de refrearem-se possíveis condutas semelhantes e igualmente ilícitas.

Mas a função compensatória é a prevalecente, por ser própria do Direito dos Danos o princípio da ressarcibilidade da vítima, por consistir a compensação do dano, em outras palavras, a própria razão de ser da indenização. As outras duas funções, embora relevantes, são secundárias, e devem interferir na definição do montante da indenização, embora secundariamente, mas sem perder de vista a necessidade da correção de condutas impróprias do fornecedor.

E ao lado de critérios gerais como a incomensurabilidade do dano moral, o atendimento à vítima, à minoração do seu sofrimento, o contexto econômico do País etc., a doutrina recomenda o exame: (i) da conduta reprovável, (ii) da intensidade e duração do sofrimento; (iii) a capacidade econômica do ofensor e (iv) as condições pessoais do ofendido17.

As lesões acometem a autora desde o ano de 2003 e as suas conseqüências a acompanharão pelo restante da vida. Causam-lhe, ao que parece, intensa dor, a ponto de incapacita-la não apenas para o trabalho mas também para as atividades da sua vida privada e de relações. A perda da capacidade de trabalho também afeta a sua dignidade, tolhendo-a de, com o próprio esforço, conseguir o sustento próprio e do seu dependente, uma causa que repercute na auto-estima do indivíduo. O motorista da ré agiu com culpa leve. As condições sócio-econômica da autora não são boas. A da ré, ao contrário, ao que parece, são excelentes. Houve violação a mais de uma dimensão da dignidade da pessoa humana -- a incolumidade física e a psíquica causada, esta, pela perda da capacidade de trabalho. Agora quanto ao aspecto dissuasório da indenização: a ré atua em um segmento do mercado que atrai para o seu negócio milhares de consumidores; e nessa medida, a indenização deve ser suficientemente idônea para alertá-la das conseqüências da reiteração de condutas como essa, essencialmente lesivas ao consumidor, forçando-a a escolher ou orientar melhor os seus motoristas. Não houve por parte da ré iniciativa alguma para a minimização dos danos.

Desse modo, a indenização deve ser reduzida para R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais).

§ 3. PELO EXPOSTO, a Câmara, por unanimidade, provê em parte a apelação para reduzir a indenização para R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais), incidindo a correção monetária deste julgamento.

Participaram do julgamento os Senhores Desembargadores Valter Ressel (Presidente sem voto), Nilson Mizuta (Revisor) e Domingos José Perfetto, que acompanharam o voto do Relator.

Curitiba, 10 de dezembro de 2009.


Albino Jacomel Guérios
Juiz Relator Convocado


1 CAVALIERI FILHO, Sergio, Programa de responsabilidade civil, 7.ª ed., São Paulo: Atlas, 2007, p. 515.
2 CAVALIERI FILHO, Sergio, ob. c., p. 516.
3 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, Curso de Direito Administraivo, 5.ª ed., São Paulo: Malheiros, 1994, p. 387.
4 STOCO, Rui, Responsabilidade Civil e sua Interpretação Jurisprudencial, 3.ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 384.
5 TACív.-RJ -- da 7.a Câm., reg. em 13-1-95 -- Ap 9083/94 -- Juiz Sylvio Capanema -- Viação Mauá Ltda. x Anselmo Mauro do Lago Carvalho.
6 MARQUES, Cláudia Lima, Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 3.ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 174.
7 GONÇALVES, Carlos Roberto, Responsabilidade Civil, 5..ª ed., São Paulo: Saraiva, 1994, p. 210.
8 STOCO, Rui, ob. c., p. 119.
9 AGUIAR DIAS, José de, Da responsabilidade civil, 9.ª ed., 1994, v. 2, p. 695, nº 221.
10 PEDROTTI, Irineu Antonio, Compêndio de responsabilidade civil, São Paulo: Leud, 1992, p. 263.
11 THEODORO JÚNIOR, Humberto, Responsabilidade civil, São Paulo: Leud, 1985, p. 28.
12 ALVINO LIMA, Culpa e risco, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1960, p. 76.
13 CAVALIERI FILHO, Sergio, ob. c., p. 59.
14 MORAES, Maria Celina Bodin de, Danos à Pessoa Humana, Uma Leitura Civil Constitucional dos Danos Morais, Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 303 e seguintes.
15 SANTOS, Antonio Jeová, ob. c., p. 162.
16 MORAES, Maria Celina Bodin de, ob. c., p. 306.
17 SANTOS, Antonio Jeova, p. 180 e seguintes.