Acórdão na Íntegra
APELAÇÃO CRIME Nº 117821-2, DE RIO BRANCO DO SUL, VARA ÚNICA.
APELANTE - JOSÉ MIRANDA DE OLIVEIRA
APELADO - MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ
RELATOR - DES. TELMO CHEREM




USO DE DOCUMENTO FALSO - ART. 304 DO CÓDIGO PENAL - CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO - EXIBIÇÃO SOLICITADA PELA AUTORIDADE POLICIAL - IRRELEVÂNCIA - CONDENAÇÃO MANTIDA.
Configura-se o tipo incriminador do art. 304, do Código Penal, com a efetiva utilização da carteira nacional de habilitação falsa pelo condutor de veículo automotor, ainda quando apresentada por solicitação da autoridade policial, revelando-se inconsistente alegação de crime impossível, em razão de falsificação grosseira, se o documento se mostra apto para iludir o homem comum
RECURSO DESPROVIDO.





VISTOS, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CRIME Nº 117821-2, DE RIO BRANCO DO SUL, VARA ÚNICA, em que é APELANTE: JOSÉ MIRANDA DE OLIVEIRA e APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ.
1. Trata-se de recurso de apelação interposto por José Miranda de Oliveira da sentença de f. 61/62, que o condenou, como incurso no art. 304, caput, do Código Penal, à pena de 02 anos de reclusão, substituída por restritiva de direito e multa, pela prática assim descrita na denúncia:
Consta dos autos de inquérito policial em referência que, no dia 25.03.99, por volta das 10:30 horas, nesta cidade e comarca, o denunciado José Miranda de Oliveira, vulgo 'Juca', quando conduzia o veículo Volkswagen Voyage, placa ADB-8842, pela Rua Coronel Carlos Pioli, centro, via pública desta urbe, foi flagrado por policiais militares em atividade de policiamento ostensivo de trânsito fazendo uso da Carteira Nacional de Habilitação nº 065722984, expedida pela Ciretran da Cidade de Lages, SC, falsificada consoante descrito no auto de exibição e apreensão de fls. 09 e laudo pericial de fls. 13/14.
Suscita o recorrente, preliminarmente, a nulidade da denúncia, por inobservância do princípio da unidade, ao argumento de que há nos autos referência a co-autor que não foi denunciado. No mérito, alega ter sido vítima de estelionato praticado por terceiro, que exigiu vultosa importância e o fez crer que a carteira de habilitação era verdadeira, sustentando, ainda, que não o apresentou espontaneamente, mas por exigência da autoridade policial, de modo a restar descaracterizado o crime pelo não uso do documento, certo, ademais, mostrar-se grosseira a falsificação, conforme atestado pelo laudo da criminalística. Aduz que não ostenta condições para contribuir com cinco latas de leite em pó mensais para a instituição indicada no decisum, já que é aposentado e recebe apenas um salário mínimo mensal. Pede, então, sua absolvição; quando não, a diminuição da pena alternativa cominada.
Apresentadas as contra-razões, foram os autos encaminhados ao e. Tribunal de Alçada, que, declinando da competência, remeteu-os a esta Corte
A d. Procuradoria Geral de Justiça emitiu parecer pelo desprovimento do recurso.
2. Não se verifica a pretendida nulidade da denúncia, pela alegada inobservância do princípio da indivisibilidade da ação penal.
É certo que, sob certo ângulo, alguma razão assiste ao recorrente, porquanto, a despeito da existência de indícios do envolvimento de outras pessoas no delito imputado e, mesmo, no de falsificação de documento público, nada se mencionou na denúncia, tampouco se requisitou diligências para a apuração da identidade desses possíveis co-autores ou partícipes.
Sucede, entretanto, que o princípio da indivisibilidade da ação penal não tem o alcance pretendido, pois, como adverte MIRABETE, a exclusão de um co-autor ou partícipe não leva à rejeição da denúncia, mesmo porque pode entender seu subscritor inexistir fundamento para sua inclusão. Além disso, a qualquer tempo pode o Ministério Público oferecer denúncia contra o co-autor ou partícipe, ressalvada a hipótese de arquivamento expresso ou implícito, em que se exige novas provas para a instauração da ação penal (in Código de Processo Penal Interpretado, 8ª ed., SP, Atlas, 2001, p. 182).
Nesse sentido, a proclamação do e. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: Desconhecida a identidade física dos demais participantes do fato delituoso, a denúncia do único indiciado conhecido não se apresenta, por essa circunstância, viciada, de sorte a ensejar a sua nulidade (RSTJ 20/75).
De qualquer modo, ainda que vício houvesse, sua argüição não mais seria possível no caso dos autos, pois, conforme decidiu a. SUPREMA CORTE, A alegação de inépcia, por não ter sido oportunamente suscitada, encontra-se superada pela superveniência da sentença condenatória (HC nº 71512, Primeira Turma, relator Min. ILMAR GALVÃO, DJU 07.10.94, p. 26825).
3. No mérito, o inconformismo, do mesmo modo, não merece prosperar.
O recorrente, como visto, foi condenado pelo uso de documento falso (art. 304, CP), em razão de ter, em 25.03.99, apresentado Carteira Nacional de Habilitação falsa ao ser abordado, quando conduzia veículo automotor, por policiais militares em atividade de policiamento ostensivo de trânsito.
A materialidade do delito está estampada no auto de exibição e apreensão de f. 12 e no laudo de exame documentoscópico de f. 16/17 elaborado pelo Instituto de Criminalística do Estado, cuja conclusão é pela inautenticidade da carteira nacional de habilitação objeto da perícia.
A autoria é induvidosa e recai no apelante que, autuado em flagrante após exibir referido documento aos policiais, veio a confessar que realmente portava a carteira há cerca de um ano, desde que a comprou de uma pessoa conhecida por Valdecir, pela importância de R$ 700,00. Perante o Juízo, confirmou tais declarações, aduzindo que pagou o valor referido e não fez nenhum exame para obter a Carteira Nacional de Habilitação, mas que não tinha certeza do documento ser falso, porém já estava desconfiado.
Em nada afeta a imputação o fato da carteira não ter sido apresentada espontaneamente, senão em face de exigência da autoridade policial.
A questão não é nova nesta c. Câmara, que, na esteira da jurisprudência das Cortes Superiores (STF - HC 72242/PR, 1ª Turma, Rel. Min. MOREIRA ALVES, DJU 02.02.96, p. 850; STJ - REsp nº 193210/DF, 5ª Turma, Rel. Min. JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, DJU 24.05.99, p. 190), já tem orientação firmada, como se pode ver, por exemplo, dos acórdãos nº 10086 (Rel. Des. NUNES DO NASCIMENTO), nº 12377 (deste Relator) e nºs 9245, 11430 e 11111 (Rel. Des. CARLOS HOFFMANN), este último assim ementado:
"USO DE DOCUMENTO FALSO - EXIBIÇÃO DE CÉDULA DE IDENTIDADE POR SOLICITAÇÃO DE POLICIAIS NO EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES - CARACTERIZAÇÃO - APELO NÃO PROVIDO.
O crime de uso de documento falso consuma-se com sua utilização. Comete-o, assim, o agente que exibe cédula de identidade a policial em serviço de sua atividade".

Com efeito, o crime do art. 304, da lei penal, consuma-se com a utilização do documento falso para os fins aos quais se destina e, no caso da espécie, o recorrente, mesmo em face da exigência da autoridade policial, poderia, se quisesse, ter deixado de apresentá-lo; ao contrário, porém, exibiu-o, dele se servindo. Por outras palavras, dispondo a lei que ninguém poderá dirigir veículos automotores sem a necessária habilitação, o fato de ter apresentado a carteira à autoridade policial quando na condução de veículo automotor, fez incidir o tipo incriminador em exame, visto que utilizado o documento justamente para o fim a que serviria, não fosse falso.
Nesse sentido, a iterativa jurisprudência do mesmo e. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
"PENAL. USO DE DOCUMENTO FALSO (ART. 304). CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO. CONSUMAÇÃO. O crime de uso de documento falso depende, para a sua consumação, da forma corrente de utilização de cada documento. Exigindo o Código Nacional de Trânsito que o motorista 'porte' a carteira de habilitação e a exiba quando solicitada, portar a carteira para dirigir é uma das modalidades de uso desse documento. Se a carteira é falsa, o crime do art. 304 do CP se configura ainda que a exibição do documento decorra de exigência da autoridade policial. ..." (REsp 63370/SP, 5ª Turma, Rel. Min. ASSIS TOLEDO, DJU 17.06.96, p. 21.501).

"PENAL. USO DE DOCUMENTO FALSO. CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO. APREENSÃO PELA POLÍCIA. CP, 304. O crime de uso de documento falso, tipificado no art. 304, do CP, consuma-se com sua utilização, cometendo o delito o condutor de veículo que, portando falsa carteira de habilitação, a exiba quando solicitado pelo policial em serviço de controle de tráfego." (REsp 75764/MG, 6º Turma, Rel. Min. VICENTE LEAL, DJU 21.10.96, p. 40282).
Outrossim, improcede a alegação do apelante de que faltariam os requisitos do falsum, a decorrer de adulteração grosseira do documento, facilmente constatável, o que configuraria crime impossível.
Não se trata, contudo, de falsificação grosseira, sendo certo que a carteira foi expedida em 17/12/97 (f. 18) e o recorrente, conforme relatou em seu interrogatório de f. 12, dela fez uso durante mais de um ano...
Ao exibi-la aos policiais que o detiveram, a eles pareceu que o documento fora impresso em papel de qualidade inferior ao da Casa da Moeda utilizada para confecção de Carteiras Nacionais de Habilitação, razão pela qual consultaram o órgão de trânsito emissor (no Estado de Santa Catarina), só então se certificando da falta de autenticidade da habilitação. Desse proceder, intui-se que não tiveram imediata certeza da contrafação, daí a necessidade da consulta telefônica, a fim de roborar aquela impressão inicial. O diagnóstico, cumpre observar, partiu de pessoas que detinham conhecimento especializado para a aferição e, certamente, passaria desapercebido aos olhos do homem comum.
Como se tem repetido, ocorre falsificação grosseira quando, mediante mero exame ocular do documento, pode-se perceber a adulteração. Não foi, como visto, o que sucedeu no caso, em que os policiais apenas suspeitaram de sua autenticidade (como ficou implícito na atitude de telefonar para Lages), remanescendo a falsidade definitivamente comprovada somente depois de periciado o documento, na forma do laudo de f. 16/17, emitido pelo Instituto de Criminalística. E, segundo os peritos que o subscreveram, a conclusão de falsidade da carteira tem suporte nas vinhetas, sem nitidez e desprovidas de talho-doce; na ausência de fibras luminescentes e na resposta negativa à iluminação ultravioleta.
É de meridiana clareza que o homo medius jamais teria como constatar a ausência dessas características de segurança e, se a simples inspeção ocular do documento revela que ele é perfeitamente capaz de iludi-lo, a circunstância de o policial (treinado especificamente) que interceptou o apelante ter suspeitado da falsidade da Carteira Nacional de Habilitação que lhe foi apresentada, não significa, por si só, que a falsificação seja grosseira, não havendo cogitar de crime impossível.
Do mesmo modo, não há como afastar a condenação ao pretexto, vazio em si, de que o recorrente teria sido ludibriado na sua boa-fé, ou, como afirma, vítima de estelionato. É irrecusável o conhecimento e a vontade de usar o documento, cuja falsidade ficou plenamente evidenciada já pela forma de sua obtenção.
Consoante salientara o saudoso Desembargador LUIZ VIEL, com a proficiência que o caracterizava, "o dolo não decorre da afirmação do agente e extrai-se da cena geral, como os demais elementos do tipo. Pagar pela carteira e não submeter-se a nenhum exame é segura indicação de ciência e vontade de comprar documento público que não pode ser desse modo fornecido" (acórdão. nº 7684).
Não é sequer razoável a hipótese de que alguém, nas condições do recorrente, desconheça as exigências a que deve se submeter (exames, provas, pagar taxas, dentre outras) para obter sua habilitação e aceite como legítimo pagar a outrem - que não guarda vínculo com o serviço público - para, sem mais, conseguir tal documento.
No que respeita à pena substitutiva de prestação de serviços à comunidade, não impressiona a aventada dificuldade financeira para fornecer, mensalmente, à entidade beneficiada cinco latas de leite em pó. Na realidade, o apelante aufere renda maior do que a apontada (um salário mínimo), tanto assim que, no auto de qualificação, vida pregressa e interrogatório extrajudicial, declarou à autoridade policial que possuía rendimento mensal de R$ 350,00 (trezentos e cinqüenta reais), isto no ano de 1999 (f. 11).
Daí, a arguta indagação da d. Procuradoria Geral de Justiça: como pôde ele pagar o preço de um automóvel, o valor da manutenção e despesas com gasolina, para dirigir o seu veículo e, ainda, pagar um preço tão elevado, para conseguir uma Carteira Nacional de Habilitação, sem se submeter às formalidades legais exigidas?
ANTE O EXPOSTO:
ACORDAM os Desembargadores da Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, à unanimidade de votos, em NEGAR PROVIMENTO à apelação.
Participaram do julgamento os Excelentíssimos Desembargadores TROTTA TELLES (Presidente) e CARLOS HOFFMANN.
Curitiba, 04 de abril de 2002.

TELMO CHEREM - Relator

Não vale como certidão ou intimação.