REVOCATÓRIA DE DOAÇÃO POR INGRATIDÃO
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - REVOCATÓRIA - DOAÇÃO - MANIFESTAÇÃO DE VONTADE - INGRATIDÃO - OFENSA FÍSICA -
PROCEDÊNCIA. Conforme orienta o art. 112, do Código Civil de 2002, nas
declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que
ao sentido literal da linguagem. A doação pode ser revogada por ingratidão quando o donatário cometer
ofensa física contra o doador.
APELAÇÃO CÍVEL N° 1.0024.08.054251-7/002 - COMARCA DE BELO
HORIZONTE - APELANTE(S): JOAO FERNANDES DE MELO E
OUTRO(A)(S) - APELADO(A)(S): ALEX FERNANDES MODESTO - RELATOR: EXMO. SR. DES.
MARCELO RODRIGUES
ACÓRDÃO
Vistos etc., acorda, em Turma, a 11ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal de
Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos e das
notas taquigráficas, à unanimidade de votos,
Belo Horizonte, 19 de agosto de 2009.
DES. MARCELO RODRIGUES - Relator
NOTAS TAQUIGRÁFICAS
O SR. DES. MARCELO RODRIGUES:
VOTO
Trata-se de apelação cível interposta por João Fernandes de Melo e
Luiza Modesto Miranda de Melo em face da r. sentença
de f. 80/83, pela qual o Juiz singular julgou improcedente o pedido inicial na
ação revocatória que movem contra Alex Fernandes Modesto, e condenou-os ao
pagamento das custas e honorários advocatícios fixados em R$ 14% sobre o valor
da causa, suspensa a exigibilidade porquanto deferida a assistência judiciária.
Em suas razões de recurso os apelantes pugnam pela reforma da
sentença alegando que comprovaram que o imóvel objeto dos autos foi doado para
o réu, em razão de ser seu único filho, e que à época não tinha condições de
adquiri qualquer bem por depender dos pais. Sustentam que a ação tem por objeto
revogar por ingratidão, a doação do imóvel, posto que o apelado agrediu fisicamente a apelante
Luiza Modesto Miranda de Melo, dando ensejo ao pedido. Pugnam pela revogação da
doação, cancelamento do
registro em nome do apelado, e transferência da propriedade do imóvel para o
nome dos apelantes.
Presentes os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.
Pretendem os apelantes a revogação de um ato de doação para o apelado, que no caso é seu
filho único, em razão de ingratidão cometida com a genitora, conforme boletim
de ocorrência e procedimento criminal por eles apresentados.
Inicialmente, importa relatar que às f. 08/09-TJ, encontra-se a
cópia de uma escritura pública de compra e venda, figurando como outorgante
vendedora Maria Tereza Alvarenga Rodrgiues, antiga
proprietária do imóvel, e como outorgados compradores, Alex Fernandes Modesto,
da nua propriedade, e João Fernandes de Melo e Luiza Modesto Miranda de Melo,
do usufruto, respectivamente, réu e autores da ação.
O objeto do negócio jurídico é o imóvel descrito na matrícula n.
45.224, do 3º Serviço de Registro de Imóveis desta Capital, com respectiva
fração ideal, na qual foi realizado o registro do ato sob os n.
R.04 e R.05, f. 12/13.
Segundo dispõe o art. 541, e seu parágrafo único, do Código Civil de 2002, aplicável à espécie, a doação far-se-á por escritura pública ou
instrumento particular, admitindo-se a doação verbal quando referir-se a bens móveis de pequeno valor.
Com efeito, em que pese o nome dado à pública forma de f.
08/09-TJ, tem-se que, em verdade, tal negócio jurídico retratou autêntica doação inoficiosa. Essa, a real manifestação
volitiva das partes não pode ser suplantada pelo título jurídico estampado no
respectivo instrumento, ainda que por Notário, dado que o nome não altera, por
si só, a natureza jurídica do negócio.
Conforme orienta o art. 112, do Código Civil de 2002, nas
declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que
ao sentido literal da linguagem.
Oportuna a citação da atual e renomada doutrina a respeito da
matéria, para elucidar o meu convencimento no julgamento deste caso particular.
Fabrício Zamprogna Matiello anota sobre
a referida norma legal que:
"(...)guardadas as devidas
proporções, porque sempre que houver necessidade de interpretar certa
manifestação volitiva (porque nela presente ponto controvertidoou
aspecto duvidoso) será imprescindível tomá-la no contexto em que estiver
inserida. A análise da construção literal é de suma relevância, mas
isoladamente pode levar a conclusões equivocadas e mesmo destoantes do sentido
correto que o agente pretendeu dar. À literalidade deve-se somar a logicidade da manifestação (integração entre o literal e aimpressão deixada pelo conjunto) e a confrontação do
conteúdo volitivo com os demais componentes exógenos que porventura o
circundem." (Código Civil Comentado, 2ª ed., São Paulo: LTr, 2005, pág. 95, nota 3).
O ilustre jurista Caio Mário da Silva Pereira, com majestosa
lição, pondera que:
"O hermeneuta não pode desprezar a declaração de vontade sob
o pretexto de aclarar um intenção interior do agente.
Deve partir, então ,da declaração da vontade, e procurar seus efeitos
jurídicos, sem se vincular ao teor gramatical do ato, porém indagando da
verdadeira intenção. Esta pesquisa não pode situar-se no desejo subjetivo do
agente, eis que este nem sempre coincide com a produção das consequências
jurídicas do negócio. Os circunstantes que envolvem a realização do ato, os
elementos econômicos e sociais que circundam a emissão de vontade são outros
tantos fatores úteis." (Instituições de Direito Civil, vol. I, Rio de
Janeiro: Forense, 2005, p. 502).
Notadamente, é possível se extrair da declaração aposta nos dois
instrumentos públicos de que a intenção dos apelantes era promover uma doação ao apelado, e assim, realizaram este
ato na medida em que houve a reserva de usufruto para si.
Vale dizer, de acordo com as regras de experiência comum, é
habitual na sociedade brasileira a manobra efetuada pelos apelantes para a
concretização do objetivo de repassar aos filhos os bens que lhe seriam
destinados na herança, sem a realização do negócio formal da doação do numerário para a aquisição do bem,
evitando-se o pagamento do tributo correpondente.
Ora, conclui-se que a realização de uma compra e venda em nome do
único herdeiro, com reserva de ususfruto para si, a
título gratuito, reveste-se das mesmas características
da doação, em que
pese o nome dado ao título.
Logo, interpretando-se o negócio jurídico lavrado no título visto
em cópia de f. 10, tem-se que o ato jurídico perfeito e acabado que ficou
consignado no instrumento público reflete a vontade das partes de adquirirem a
propriedade e por conseguinte tranferir
o imóvel ao único filho, reservando-lhes o usufruto.
Há que se ter em voga que as condições das partes e sua relação de
parentesco, bem como a boa-fé que emana da declaração dos apelantes amparada
pelos substratos probatórios jungidos aos autos, reforçam os elementos quanto
ao fato de que o ato teria se consumado para fazer valer essa intenção dos
apelantes.
Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira:
"O conceito de boa-fé, embora flexível, pode ser dominado por
uma regulamentação pragmática, a dizer que o espírito da declaração deve
preponderar sobre a letra da cláusula; a vontade efetiva predominar sobre o
formalismo; o direito repousar antes na realidade do que nas palavras"
(obra citada, pag. 36)
Pois bem.
Revestindo-se o negócio jurídico com as vestes da doação do imóvel, cumpre analisar a
ocorrência de ingratidão para fins de revogação do ato e alteração da
propriedade do imóvel para o nome dos apelantes.
Conforme se observa pelo boletim de ocorrência de f. 15, o apelado
realizou atos de agressão contra sua genitora, a apelante Luiza Modesto Miranda
de Melo, e impediu seus genitores de adentrarem no imóvel.
O apelado alegou que a saída dos apelantes ocorreu de forma
espontânea, e confessou desavenças em razão de relacionamento amoroso com
terceira pessoa.
Porém, em outra oportunidade, o próprio apelado confessou que não
deixaria mais seus genitores adentrarem o imóvel, e que eles deveriam procurar
seus direitos por outros meios, f. 17.
Ademais, conforme se observa pela movimentação processual juntada
à f. 51, o Ministério Público ofereceu denúncia para início da ação penal, fato
que corrobora com a ocorrência da ofensa física, pois do contrário, teria
requerido o arquivamento do inquérito, conforme disciplina o art. 28, do Código
Penal.
Lado outro, imperioso anotar que a ingratidão por agressão física
não necessita de condenação criminal, muito menos apuração da gravidade,
bastando que se caracterize com tal.
Assim, tenho que restou comprovado nos autos a
ocorrência da agressão física e por consequência,
motivos para a revogação da doação.
De acordo com o art. 555, cumulado com o art. 557, inciso II,
ambos do Código Civil de
Portanto, em conjugação de todos os elementos presentes nos autos,
e a prova da ocorrência de agressão contra o doador, nada
mais justo do que acolher o pedido para a revogação do ato, e a
alteração da propriedade do imóvel para o nome dos doadores.
Neste sentido, observa-se a necessidade de emissão de mandado de
averbação para cancelar parcialmente o R.04, da
matrícula 45.224, do 3º Serviço de Registro de Imóveis de Belo Horizonte,
quanto ao nome do adquirente Alex Fernandes Modesto, e a nua propriedade;
cancelar totalmente o R.05, e o AV.06; e alterar o nome dos adquirentes da
propriedade do imóvel, para que esse direito real no R.04, figure no nome dos
apelantes João Fernandes de Melo e Luiza Modesto Miranda de Melo.
Diante de todo o exposto, DOU PROVIMENTO AO RECURO para revogar a doação por ingratidão e determinar a
expedição de mandado de averbação para o parcial cancelamento do R.04, da matrícula 45.224, do 3º Serviço de Registro de
Imóveis de Belo Horizonte, quanto ao nome do adquirente Alex Fernandes Modesto,
e sua nua propriedade; cancelar totalmente o R.05, e o AV.06; e alterar o nome
dos adquirentes da absoluta propriedade do imóvel, para que esse direito real
no R.04, figure no nome dos apelantes João Fernandes de Melo e Luiza Modesto
Miranda de Melo, ficando a cargo deles eventual pagamento dos respectivos
emolumentos perante o Oficial Registrador, assim como de tributos incidentes.
Por consequência, condeno o apelado ao
pagamento das custas e honorários advocatícios que fixo em R$1.000,00 (mil
reais), suspensa a exigibilidade porquanto amparado pela assistência
judiciária, patrocinado pela Defensoria Pública.
O SR. DES. MARCOS LINCOLN:
VOTO
Acompanho o Relator.
O SR. DES. DUARTE DE PAULA:
VOTO
Trata-se de ação revogatória de doação com suporte em declaração de vontade contida em escritura pública
e aditamento, instrumentos pelos quais os autores adquiriram de Maria Tereza
Alvarenga Rodrigues, folha 8, o imóvel que resolveu
doar a seu tio, Alex Fernandes Modesto, reservando-lhes, no entanto, usufruto
vitalício.
Resta demonstrado pela análise da cadeia de
fatos colocada nos autos, uma doação
inoficiosa pela real e efetiva vontade dos autores usufruários
do imóvel.
Nas declarações de vontade, deve-se perseguir mais a intenção
delas contidas do que o sentido literal da linguagem, artigo 112 do Código
Civil, não fosse vigir o império da boa-fé objetiva
que deve presidir todos os negócios jurídicos.
A prova demonstra quanto "satis"
a ingratidão como referida, definida do artigo 555,
combinado com o 557, II do Código Civil. Em havendo ofensa física do donatário
ao doador, o que se vê do boletim de ocorrência de folha 15, da confissão do
apelado e da denúncia ofertada pelo Ministério Público, folha 51, com que se
iniciou a ação penal. O voto de Sua Excelência, ilustre Relator é incensurável,
empresto-lhe a minha inteira adesão com os adminículos acima citados,
recomendando a sua publicação.
SÚMULA : DERAM PROVIMENTO.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS
APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0024.08.054251-7/002