COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA COM RESTITUIÇÃO DE 70%

APELAÇÃO CÍVEL N° 121.521-6, DE LONDRINA - 3a VARA CÍVEL
APELANTE: CONSTRUTORA ALMANARY EMPREENDIMENTOS E ASSESSORIA LTDA
APELADA: TEREZINHA MARIA DA SILVA
RELATOR: Des. Ivan Bortoleto

APELAÇÃO CÍVEL - COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL - RESCISÃO COM RESTITUIÇÃO DE 70% DO QUE FOI PAGO (CC, ART. 924) - RETENÇÃO PELA VENDEDORA DE 30% DO QUE RECEBEU COMO INDENIZAÇÃO - APLICAÇÃO DAS NORMAS COGENTES DE ORDEM PÚBLICA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR (ARTS. 51 E 53) - DEVOLUÇÃO EM PARCELA ÚNICA.


Apelo desprovido.
1. Toda relação de consumo está sujeita a incidência das normas cogentes e de ordem pública previstas no Código de Defesa do Consumidor (art. 1º), operando-se a nulidade de pleno direito de qualquer cláusula abusiva nela prevista, o que pode ser alegado a qualquer tempo ou grau de jurisdição; impondo-se ao juiz, inclusive, o dever de pronunciá-la de ofício.
2. A desistência do compromissário comprador de bem imóvel lhe dá direito à devolução dos valores pagos, na forma do disposto no artigo 53 e caput, incisos II e IV, e § 1º, do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor, que estabelece indistintamente a nulidade de todas as disposições contratuais que envolvam a perda dos valores pagos.
3. A devolução das quantias pagas deve ser feita de uma só vez, admitindo-se a retenção, pela vendedora, do equivalente a 30% (trinta por cento) das parcelas pagas, como forma de composição de eventuais prejuízos pela inexecução do contrato (art. 924 do CC).



VISTOS, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 121.521-6, de Londrina - 3ª Vara Cível, em que é apelante Construtora Almanary Empreendimentos e Assessoria Ltda e apelada Terezinha Maria da Silva.
I - Trata-se de recurso de apelação interposto por Construtora Almanary Empreendimentos e Assessoria Ltda, da sentença proferida na ação de rescisão de contrato, cumulada com ressarcimento de quantias pagas que lhe moveu Terezinha Maria da Silva, na qual se acolheu parcialmente o pedido, declarando-se rescindido o contrato de compra e venda do imóvel e determinando-se a restituição de 70% do valor das parcelas pagas relativamente ao contrato, com correção monetária e juros moratórios a partir da citação.
Irresignada, apelou a Construtora Almanary Empreendimentos e Assessoria Ltda, historiando que no instrumento particular de compromisso de compra e venda de imóvel firmado com a recorrida, esta assumiu o pagamento do preço total de R$ 40.219,96 (quarenta mil, duzentos e dezenove reais e noventa e seis centavos), pagando a título de sinal de negócio a quantia de R$ 487,00 (quatrocentos e oitenta e sete reais), e assumindo o saldo remanescente em 165 (cento e sessenta e cinco) parcelas. Sustentou, preliminarmente, a impossibilidade jurídica do pedido, uma vez que a compradora, estando inadimplente, não teria o direito de pedir a rescisão do contrato, segundo artigo 1.092 do Código Civil, razão pela qual não se poderia falar na aplicação do artigo 53 do Código de Defesa do Consumidor, devendo o processo ser extinto sem julgamento do mérito, nos termos do artigo 267, inciso VI do Código de Processo Civil. Pugnou que sendo mantida a sentença, no concernente à devolução das parcelas pagas, que isto não venha a ocorrer de forma imediata e sim conforme o avençado, verbis: ...no final do empreendimento ou quando da venda/cessão dos direitos referentes à unidade contratada pela apelada, a fim de evitar danos ao próprio empreendimento e àqueles que pagam em dia suas prestações... (f. 90). Pediu finalmente a compensação de três parcelas, e a inversão dos ônus de sucumbência.
Terezinha Maria Silva, intimada, refutou todos os argumentos vertidos no apelo e requereu a manutenção da sentença.
II - Sem razão a apelante quando postula a extinção do processo pelo reconhecimento da impossibilidade jurídica do pedido e ausência de interesse de agir.
Na hipótese dos autos, a apelada nada mais fez que exercitar o direito de ação imprescindível à obtenção da rescisão do contrato que firmara, e a conseqüente devolução das quantias pagas, como lhe assegura o ordenamento jurídico vigente. A possibilidade jurídica, a legitimidade e o interesse da autora na propositura da ação são evidentes, como se verá adiante.
Ainda que não tenha sido expressamente pleiteada a declaração em sentença da nulidade de cláusulas do instrumento de distrato, esta pode ser reconhecida pelo Juiz, como foi, em razão do caráter público e cogente das normas do Código de Defesa do Consumidor, pois dúvida não há de que o negócio celebrado encerra típica relação de consumo.
A nulidade de qualquer cláusula abusiva insculpida no contrato não é atingida pela preclusão, podendo ser alegada e reconhecida a qualquer tempo e grau de jurisdição, impondo-se ao juiz, inclusive, o dever de pronunciá-la de ofício. O artigo 51, caput, incisos II e IV, e § 1º, do Código de Defesa do Consumidor, indica a nulidade de pleno direito das cláusulas contratuais que subtraiam do consumidor a opção de reembolso da quantia já paga; estabeleçam obrigações consideradas iníquas e abusivas, que o coloquem em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade. Presume-se exagerada, dentre outras, a vantagem que se mostra excessivamente onerosa, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso. Por outro lado, seu artigo 53 prevê a nulidade de pleno direito das cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor, nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações.
Por isto, não deve ser interpretado isolada, mas sistematicamente o princípio geral do parágrafo único do artigo 1.092 do Código Civil, que informa os contratos sinalagmáticos, e segundo o qual a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a sua rescisão.
Por outro lado, se a falta de pagamento corresponde ao inadimplemento de obrigação atribuível ao comprador, também ocorre inadimplemento quando o vendedor se recusa a restituir importâncias pagas em cumprimento de disposição expressamente contratada, ainda que em termos - cláusulas 12.1 e 12.3 (f. 14 e 15).
Assim, admitir que apenas a vendedora teria o direito potestativo de requerer a rescisão do contrato em caso de inadimplência da compradora seria o mesmo que negar vigência tanto às normas jurídicas como as condições pactuadas que asseguram o direito ao reembolso. Neste caso, a compradora hipossuficiente ficaria totalmente à mercê da iniciativa da vendedora, o que não é lógico, justo ou moral, nem compatível com os princípios da boa-fé e da eqüidade.
Se o distrato envolveu justamente a perda dos valores pagos como princípio de pagamento, é evidente que o compromissário comprador ficou em posição de desvantagem exagerada, o que atrai a aplicação das normas publicísticas já citadas. Sendo nulas, as disposições contratuais citadas não produzem quaisquer efeitos.
Com efeito, os princípios da autonomia da vontade e da obediência ao pactuado não mais sobrevivem perante os preceitos cogentes da legislação de proteção ao consumidor. Como bem gizou Arnold Wald: ... A sociedade industrial adotou uma nova concepção das relações econômicas e sociais que, ultrapassando o princípio da igualdade formal assegurada constitucionalmente, procura corrigir as desigualdades naturais ou existentes de fato, entre os seus participantes. Há, pois, uma tendência no sentido de proteger o economicamente mais fraco contra o mais forte, o leigo contra o profissional. Assim sendo, surgiu e desenvolveu-se, especialmente a partir do início do século, um conjunto de regras que constituem, hoje, a ordem pública econômica. No passado, alguns autores chegavam a enfatizar a importância crescente de um direito novo, que chamavam 'direito social', enquanto outros lhes respondiam, adequadamente, que todo direito era social. Mas, de qualquer modo, entendeu-se necessário estabelecer uma proteção especial que atendesse os casos concretos, nos quais as normas jurídicas podiam levar a injustiças....
Sustenta-se atualmente que o Direito Civil passa por uma profunda despatrimonialização, ante a sensível mudança no ordenamento que, lentamente, se vai concretizando, ... entre o personalismo (superação do individualismo) e patrimonialismo (superação da patrimonialidade, do produtivismo, antes, e do consumismo, depois, como valores)... . Em suma, o que se busca hodiernamente são soluções jurídicas muito mais existenciais e humanas que propiciem garantir a igualdade social.
Portanto, a despeito do que as partes dispuseram no contrato e no distrato, o desfazimento do negócio obriga a vendedora a restituir as importâncias pagas à compradora.
Cabe apenas impor à inadimplente a perda parcial dos valores pagos, como indenização pelas despesas com angariação de compradores, publicidade do negócio, comissões de corretagem e outras despesas havidas durante a vigência do contrato, com fulcro no artigo 924 do Código Civil, evitando-se com isto, o enriquecimento sem causa de qualquer uma das partes.
Sob pena de enriquecimento sem causa do vendedor, a devolução das quantias pagas deve ser feita de uma só vez, pois razão alguma existe para que isto ocorra apenas ao final do contrato. A perda de 30% (trinta por cento) das parcelas pagas já é uma forma de composição de eventuais prejuízos da vendedora, o que exclui a aplicação de qualquer outra penalidade, como a possível restituição de forma parcelada. Nesse sentido a orientação do colendo Superior Tribunal de Justiça:
DIREITO CIVIL RECURSO ESPECIAL AÇÃO DE CONHECIMENTO SOB O RITO ORDINÁRIO COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL INADIMPLEMENTO DO PROMISSÁRIO-COMPRADOR RESOLUÇÃO CONTRATUAL LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM POSSIBILIDADE FUNDAMENTO FAVOR DEBITORIS CLÁUSULA DE DECAIMENTO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA DO PROMITENTE-VENDEDOR LIMITAÇÃO O direito à devolução das prestações pagas decorre da força integrativa do princípio geral de direito privado favor debitoris (corolário, no direito das obrigações, do favor libertatis). O promissário-comprador inadimplente que não usufrui do imóvel tem legitimidade ativa ad causam para postular nulidade da cláusula que estabelece o decaimento das prestações pagas. A devolução das prestações pagas, mediante retenção de 30% (trinta por cento) do valor pago pelo promissário-comprador, objetiva evitar o enriquecimento sem causa do vendedor, bem como o reembolso das despesas do negócio e a indenização pela rescisão contratual. Recurso especial a que se dá provimento.
(STJ-RESP 293214-SP, 3ª Turma, relª Minª Nancy Andrighi, DJU 20.08.01, p. 00464)
Finalmente, não há que se falar na compensação de valores em atraso até a notificação da apelante, pois não havendo necessidade de ato formal, não há como compensar parcelas sob pena de descumprimento dos multicitados artigos 51 e 53 do Código de Defesa do Consumidor, o que colocaria a consumidora hipossuficiente em exagerada desvantagem.
A decisão recorrida, portanto, merece confirmação.
III - Ante o exposto, DECIDE o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por sua Oitava Câmara Cível, à unanimidade de votos, negar provimento ao recurso.
A sessão foi presidida pelo Desembargador Ivan Bortoleto, com voto. Acompanharam o Relator o eminente Desembargador Celso Rotoli de Macedo e o Juiz Convocado Antônio Renato Strapasson.
Curitiba, 01 de julho de 2002.


Des. Ivan Bortoleto
Presidente/Relator em/gc/cg

Fonte: Tribunal de Justiça do Paraná